Se escrevo, é contra o medo. Entre palavras que magoam, estilhaçam, e deixam a descoberto as cicatrizes e feridas de um passado que não me pertence e ainda assim tomo como meu. Escrevo pela necessidade imensa de dizer o que foi dito cem vezes e não sairá jamais desta voz sumida. Até à exaustão. Os lábios a fecharem-se, – o coração a dar as voltas possíveis no peito; a encolher, tremendo – e o aperto, a angústia, o peso de voltar a tudo o que dói. Por cada palavra dita, há todas as que se calam. Um silêncio ensurdecedor que teima em acordar os fantasmas que pairam no quarto. Se escrevo, meu amor, é pela coragem que não tenho. Para tentar roubar alguns beijos à melancolia e derramar as últimas lágrimas na tua almofada. Ninguém ama uma mulher triste. Se escrevo é para esquecer as fotografias. E, juro, eu só queria oferecer-te um diário de flores. Ser a tua princesa cor-de-fogo e lutar contra tudo o que nos quebra o sorriso.
quinta-feira, 31 de maio de 2012
terça-feira, 29 de maio de 2012
Aniversário
Há tanto tempo eu
trazia um vestido curto nós
subíamos as escadas eu
à frente sem reparar deixava
as pernas ao desamparo do teu
agrado, tínhamos bebido ao meu
futuro e era uma fuga o teu
presente um disco que me deste
reluzia em semi-círculo e a nós
excitava seriamente escapar eu
fazia vinte anos tu
relanceavas-me as pernas eu
abandonava a adolescência
nem olhara para trás tu
miravas-me as pernas de trás. Nós
subíamos ao telhado eu
trazia um vestido curto nós
estávamos tristes creio tu
fingias-te um sátiro e nós
subíamos ao alto desarmados.
O tambor do sol batia
nos olhos que a luz e o álcool e a luz
e o álcool diminuíam
e os brancos raiavam o solstício
incandescentes eu
fazia vinte anos tu
tinhas-me dado uma música eu
rodava-a na mão e o sol
girava no gume do metal eu
de vestido curto descrevia
um círculo de desejo nós
estávamos tristes creio nós
tínhamos subido e a crista
das telhas beliscava na pele
petéquias de luz e tu
ao disco do sol dançavas e eu
de olhos cegos espiava fazia calor nós
tínhamos bebido e tínhamos calor eu
já tinha vinte anos nós
éramos o grande amor
Margarida Vale de Gato
segunda-feira, 28 de maio de 2012
And how every little thing anticipates you
Cada momento passado juntos
Era uma celebração, uma Epifania,
Nós os dois sozinhos no mundo.
Tu, tão audaz, mais leve que uma asa,
Descias numa vertigem a escada
A dois e dois, arrastando-me
Através de húmidos lilases, aos teus domínios
Do outro lado, passando o espelho.
Arsenii Tarkovskii
domingo, 27 de maio de 2012
Volta para o meu peito, daqui não saias mais
estremeço desde o princípio do meu rosto
desde o momento em que sorri e me sorriram
e é nesse lugar ínfimo que suspendo todas as palavras
que fecho os olhos e sinto a frescura de todas as águas
o oceano que cessa e atende o esvoaçar da primavera
é a primeira primavera de todos os outonos
é aqui que em silêncio se bordam os calendários
dias entre dias e sobre dias e as memórias que escapam
e não mais se alcançam se não nos tornamos menores
– no futuro não há esquecimento nem segredos
cada coração guarda apenas o que for mais comum
Vasco Gato
sexta-feira, 25 de maio de 2012
And long after we're safe the lights will not fade
the walkabouts | the light will stay on
É Março ou Abril?
É um dia de sol
perto do mar,
é um dia
em que todo o meu sangue
é orvalho e carícia.
De que cor te vestiste?
De madrugada ou limão?
Que nuvens olhas, ou colinas
altas,
enquanto afastas o rosto
das palavras que escrevo
de pé, exigindo
o teu amor?
É um dia de Maio?
É um dia em que tropeço
no ar
à procura do azul dos teus olhos,
em que a tua voz
dentro de mim pergunta,
insiste:
Se te fué la melancolia,
amigo mío del alma?
É Junho? É Setembro?
É um dia
em que estou carregado de ti
ou de frutos,
e tropeço na luz, como um cego,
a procurar-te.
Eugénio de Andrade
quinta-feira, 24 de maio de 2012
When i dream of you, is it you?
Dormi contigo toda a noite
junto ao mar, na ilha.
Eras doce e selvagem entre o prazer e o sono,
entre o fogo e a água.
Os nossos sonos uniram-se
talvez muito tarde
no alto ou no fundo,
em cima como ramos que um mesmo vento agita,
em baixo como vermelhas raízes que se tocam.
O teu sono separou-se
talvez do meu
e andava à minha procura
pelo mar escuro
como dantes,
quando ainda não existias,
quando sem te avistar
naveguei a teu lado
e os teus olhos buscavam
o que agora
– pão, vinho, amor e cólera –
te dou às mãos cheias,
porque tu és a taça
que esperava os dons da minha vida.
Dormi contigo
toda a noite enquanto
a terra escura gira
com os vivos e os mortos,
e ao acordar de repente
no meio da sombra
o meu braço cingia a tua cintura.
Nem a noite nem o sono
puderam separar-nos.
Dormi contigo
e, ao acordar, tua boca,
saída do teu sono,
trouxe-me o sabor da terra,
da água do mar, das algas,
do âmago da tua vida,
e recebi teu beijo,
molhado pela aurora,
como se me viesse
do mar que nos cerca.
Pablo Neruda
terça-feira, 22 de maio de 2012
Porque meu coração dispara quando tem o seu cheiro dentro de um livro
Depois de um tempo, a gente entende que não
há distância para aqueles que se amam,
contrariando o que dizem a quilometragem, a
diferença de fuso, o tanto de afastamento dos
olhos. Porque o olhar que importa é o olhar que
ama, é o olhar que sente, é o olhar que
abençoa, e esse olha de qualquer lugar.
Ana Jácomo
(daqui)
Hope there's someone who'll set my heart free
Precisava de falar-te ao ouvido
De manter sobre a rodilha do silêncio
A escrita.
Precisava dos teus joelhos. Da tua porta aberta.
Da indigência. E da fadiga.
Da tua sombra sobre a minha sombra
E da tua casa.
E do chão.
Daniel Faria
segunda-feira, 21 de maio de 2012
In the forest is a monster and it looks so very much like me
pj harvey | who will love me now?
Sólo buscaba un lugar más o menos propicio para vivir, quiero decir: un sitio pequeño donde cantar y poder llorar tranquila a veces. En verdad no quería una casa; Sombra quería un jardín. - Sólo vine a ver el jardín - dijo. Pero cada vez que visitaba un jardín comprobaba que no era el que buscaba, el que quería. Era como hablar o escribir. Después de hablar o de escribir siempre tenía que explicar: - No, no es eso lo que yo quería decir. Y el peor es que también el silencio la traicionaba. - Es porque el silencio no existe - dijo. El jardín, las voces, la escritura, el silencio. - No hago otra cosa que buscar y no encontrar. Así pierdo las noches. Sintió que era culpable de algo grave. - Yo no creo en las noches - dijo. A lo cual no supo responderse: sintió que le clavaban una flor azul en el pensamiento con el fin de que no siguiera el curso de su discurso hasta el fondo. - Es porque el fondo no existe - dijo. La flor azul se abrió en su mente. Vio palavras como pequeñas piedras diseminadas en el espacio negro de la noche. Luego, pasó un cisne con rueditas con un gran moño rojo en el interrogativo cuello. Una niñita que se le parecía montaba el cisne. - Esa niñita fui yo - dijo Sombra.
Sombra está desconcertada. Se dice que, en verdad, trabaja demasiado desde que murió Sombra. Todo es pretexto para ser un pretexto, pensó Sombra asombrada.
domingo, 20 de maio de 2012
Eu amo-te, e a minha alegria morde a tua boca de ameixa
Brincas todos os dias com a luz do universo.
Subtil visitadora, chegas na flor e na água.
És mais do que a pequena cabeça branca que aperto
como um cacho entre as mãos todos os dias.
Com ninguém te pareces desde que eu te amo.
Deixa-me estender-te entre grinaldas amarelas.
Quem escreve o teu nome com letras de fumo entre as estrelas do sul?
Ah deixa-me lembrar como eras então, quando ainda não existias.
Subitamente o vento uiva e bate à minha janela fechada.
O céu é uma rede coalhada de peixes sombrios.
Aqui vêm soprar todos os ventos, todos.
Aqui despe-se a chuva.
Passam fugindo os pássaros.
O vento. O vento.
Eu só posso lutar contra a força dos homens.
O temporal amontoa folhas escuras e
solta todos os barcos que esta noite amarraram ao céu.
Tu estás aqui. Ah tu não foges.
Tu responder-me-ás até ao último grito.
Enrola-te a meu lado como se tivesses medo.
Porém mais que uma vez correu uma sombra estranha pelos teus olhos.
Agora, agora também, pequena, trazes-me madressilva,
e tens até os seios perfumados.
Enquanto o vento triste galopa matando borboletas
eu amo-te, e a minha alegria morde a tua boca de ameixa.
O que te haverá doído acostumares-te a mim,
à minha alma selvagem e só, ao meu nome que todos escorraçam.
Vimos arder tantas vezes a estrela d’alva beijando-nos os olhos
e sobre as nossas cabeças destorcerem-se os crepúsculos em leques rodopiantes.
As minhas palavras choveram sobre ti acariciando-te.
Amei desde há que tempo o teu corpo de nácar moreno.
Creio-te mesmo dona do universo.
Vou trazer-te das montanhas flores alegres,
copihues, avelãs escuras, e cestos silvestres de beijos.
Quero fazer contigo
o que a primavera faz com as cerejeiras.
Pablo Neruda
quarta-feira, 16 de maio de 2012
Há um pássaro azul no meu coração
há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado duro para ele,
e digo, fica aí dentro,
não vou deixar
ninguém ver-te.
há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu despejo whisky para cima dele
e inalo fumo de cigarros
e as putas e os empregados de bar
e os funcionários da mercearia
nunca saberão
que ele se encontra
lá dentro.
há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado duro para ele,
e digo, fica escondido,
queres arruinar-me?
queres foder-me o
meu trabalho?
queres arruinar
as minhas vendas de livros
na Europa?
há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado esperto,
só o deixo sair à noite
por vezes
quando todos estão a dormir.
digo-lhe, eu sei que estás aí,
por isso
não estejas triste.
depois,
coloco-o de volta,
mas ele canta um pouco lá dentro,
não o deixei morrer de todo
e dormimos juntos
assim
com o nosso
pacto secreto
e é bom o suficiente
para fazer um homem chorar,
mas eu não choro,
e tu?
Charles Bukowski
terça-feira, 15 de maio de 2012
O amante
cocorosie | terrible angels
Muito cedo na minha vida foi tarde de mais. Aos dezoito anos era já tarde demais. Entre os dezoito e os vinte e cinco anos o meu rosto partiu numa direcção imprevista. Aos dezoito anos envelheci. Não sei se é assim com toda a gente, nunca perguntei. Parece-me ter ouvido falar dessa aceleração do tempo que nos fere por vezes quando atravessamos as idades mais jovens, mais celebradas da vida. Este envelhecimento foi brutal. Vi-o apoderar-se dos meus traços um a um, alterar a relação que havia entre eles, tornar os olhos maiores, o olhar mais triste, a boca mais definitiva, marcar a fronte de fendas profundas. Em vez de me assustar, vi operar-se este envelhecimento do meu rosto com o interesse que teria, por exemplo, pelo desenrolar de uma leitura. Sabia também que não me enganava, que um dia ele abrandaria e retomaria o seu curso normal. As pessoas que me tinham conhecido aos dezassete anos aquando da minha viagem a França ficaram impressionadas quando me voltaram a ver, dois anos depois, aos dezanove anos. Conservei esse novo rosto. Foi o meu rosto. Envelheceu ainda, evidentemente, mas relativamente menos do que deveria. Tenho um rosto lacerado de rugas secas e profundas, a pele quebrada. Não amoleceu como certos rostos de traços finos, conservou os mesmos contornos mas a sua matéria está destruída. Tenho um rosto destruído.
Já sei muito. Sei uma coisa. Sei que não são os vestidos que fazem as mulheres mais ou menos bonitas, nem os cuidados de beleza, nem o preço dos cremes, nem a raridade, o preço dos enfeites. Sei que o problema está algures. Não sei onde. Sei só que não está onde as mulheres julgam. Olho as mulheres nas ruas de Saigão, nos postos do mato. Há-as muito belas, muito brancas, têm um cuidado extremo com a sua beleza, sobretudo nos postos do mato. Não fazem nada, guardam-se apenas, guardam-se para a Europa, os amantes, as férias em Itália, as longas licenças de seis meses, de três em três anos; quando poderão finalmente falar do que se passa aqui, desta existência colonial tão particular, do serviço desta gente, destes boys, tão perfeitos, da vegetação, dos bailes, destas vivendas brancas, grandes a ponto de nos perdermos nelas, onde estão alojados os funcionários nos postos afastados. Esperam. Vestem-se para nada. Olham-se. Na sombra dessas vivendas, olham-se para mais tarde, julgam viver um romance, têm já longos armários cheios de vestidos a que não sabem que fazer, coleccionados como o tempo, a longa sequência dos dias de espera. Algumas ficam loucas. Algumas são trocadas por uma jovem criada que se cala. Abandonadas. Ouve-se esta palavra atingi-las, o barulho que faz, o barulho da bofetada que ele dá. Algumas matam-se. Esta falta das mulheres a si próprias, por si próprias perpetrada, apareceu-me sempre como um erro. Não havia que atrair o desejo. Ele estava naquela que o provocava ou não existia. Ou estava lá desde o primeiro olhar ou então nunca existira. Era a inteligência imediata da relação de sexualidade ou então não era nada. Isso soube-o eu antes do experiment.
Ela diz-lhe: preferia que não me amasse. Mesmo que me ame gostaria que fizesse como habitualmente faz com as mulheres. Ele olha-a como que apavorado, pergunta: é isso que quer? Ela diz que sim. Ele começou a sofrer ali, no quarto, pela primeira vez, já não mente acerca disso. Diz-lhe que já sabe que ela não o amará nunca. Ela deixa-o dizer. Primeiro diz que não sabe, depois deixa-o dizer. Ele diz-lhe que está só, atrozmente só, com esse amor que tem por ela. Ela diz-lhe que também ela está só. Não diz com quê. Ele diz: seguiu-me até aqui como teria seguido outro qualquer. Ela responde que não pode saber, que nunca seguiu ninguém a quarto nenhum. Ela diz que não quer que lhe fale, o que ela quer é que ele faça como habitualmente faz com as outras mulheres que leva àquele apartamento. Pede-lhe que o faça assim. Ele arrancou o vestido, arrancou as calcinhas de algodão branco e leva-a assim nua até à cama. E depois volta-se para o outro lado na cama e chora. E ela, lenta, paciente, vira-o para si e começa a despi-lo. De olhos fechados, despe-o. Lentamente. Ele quer fazer gestos para a ajudar. Ela pede-lhe que não se mexa. Deixe-me. Ela diz que quer ser ela a fazê-lo. Fá-lo. Despe-o. Quando ela lhe pede ele desloca o corpo na cama, mas muito levemente, como para não a acordar. A pele é duma sumptuosa suavidade. O corpo. O corpo é frágil, sem força, sem músculos, poderia ter estado doente, estar em convalescença, é imberbe, sem outra virilidade que a do sexo, é muito fraco, parece à mercê de um insulto, débil. Ela não o olha no rosto. Não o olha. Toca-o. Toca a doçura do sexo, da pele, acaricia a cor dourada, a desconhecida novidade. Ele geme, chora. Está num estado de amor abominável. E a chorar fá-lo. Primeiro há a dor. E depois esta dor é por sua vez possuída, transformada, lentamente arrancada, levada até ao gozo, abraçada a ela. O mar, sem forma, simplesmente incomparável.
É um homem de hábitos, penso nele de repente, deve vir com relativa frequência a este quarto, é um homem que deve fazer amor muitas vezes, é um homem que tem medo, deve fazer amor muitas vezes para lutar contra o medo. Digo-lhe que me agrada a ideia de que tenha muitas mulheres, a ideia de estar entre essas mulheres, com elas confundida. Olhamo-nos. Ele compreende o que acabo de dizer. O olhar de repente alterado, falso, preso no mal, na morte. Digo-lhe que venha, que deve possuir-me de novo. Ele vem. Cheira bem a cigarro inglês, a perfume caro, cheira a mel, à força a sua pele apanhou o cheiro da seda, da seda aromática do tussor de seda, do ouro, desejo-o. Digo-lhe este desejo dele. Ele diz-me que espere um pouco. Fala-me, diz que soube logo, desde a travessia do rio, que eu seria assim com o primeiro amante, que amaria o amor, diz que sabe já que o hei-de enganar e também que hei-de enganar todos os homens com quem virei a estar. Diz que, no seu caso, foi ele o instrumento da sua própria infelicidade. Estou feliz por tudo o que ele me anuncia e digo-lho. Ele torna-se brutal, está desesperado, deita-se a mim, come os seios de criança, grita, insulta. Fecho os olhos àquele prazer tão forte. Penso: ele está habituado, é o que ele faz na vida, amor, só isso. As mãos são experientes, maravilhosas, perfeitas. Tenho muita sorte, é evidente, é como uma profissão que ele tivesse, sem o saber teria o saber exacto do que se deve fazer, do que se deve dizer. Chama-me puta, porca, diz que sou o seu único amor, e é isso que ele deve dizer e é isso que diz quando deixamos o dizer fazer-se, quando deixamos o corpo fazer e procurar e encontrar e agarrar o que ele quer, e aí tudo é bom, não há desperdícios, os desperdícios são cobertos de novo, vai tudo na torrente, na força do desejo.
É a noite que chega agora. Diz-me que me lembrarei toda a vida desta tarde, mesmo quando tiver esquecido até o seu rosto, o seu nome. Pergunto se me lembrarei da casa. Ele diz-me: olha-a bem. Digo-lhe que é como qualquer outra. Ele diz-me que sim, que é isso, como sempre. Revejo ainda o rosto, e lembro-me do nome. Vejo ainda as paredes caiadas, o estore de lona que dá para a fornalha, a outra porta em arcada que leva ao outro quarto e a um jardim a céu aberto - as plantas morreram de calor - rodeado de balaustradas azuis como o grande palacete de Sadec com terraços em degraus que dá para o Mékong. É um lugar de abandono, naufragado. Pede-me que lhe diga em que penso. Digo-lhe que penso na minha mãe, que ela me matará se souber a verdade. Vejo que ele faz um esforço e depois di-lo, diz que compreende o que a minha mãe quer dizer, di-lo: esta desonra. Diz que não poderia suportar essa ideia em caso de casamento. Olho-o. Ele olha-me por sua vez, desculpa-se com orgulho: sou um chinês. Sorrimos. Pergunto-lhe se é costume estar-se triste como nós estamos. Ele diz que é porque fizemos amor durante o dia, no momento em que o calor é maior. Diz que é sempre terrível depois. Sorri. Diz: quer nos amemos, quer não, é sempre terrível. Diz que há-de passar com a noite, assim que ela chegar. Digo-lhe que não é só por ter sido durante o dia, que está enganado, que estou numa tristeza que já esperava e - que só vem de mim. Que sempre fui triste. Que vejo essa tristeza também nas fotografias em que sou muito pequena. Que hoje esta tristeza, reconhecendo-a embora como a que sempre tive, poderia quase dar-lhe o meu nome, de tal modo se me assemelha. Hoje digo-lhe que é um bem-estar esta tristeza, o de ter finalmente caído numa desgraça que a minha mãe me anuncia desde sempre quando grita no deserto da sua vida. Digo-lhe: não percebo muito bem o que ela diz, mas sei que este quarto é o que eu esperava. Ele vê-me falar, não tira os olhos de mim, olha a minha boca enquanto falo, estou nua, ele acaricia-me, talvez não me ouça, não sei. Eu digo que não faço da desgraça em que me encontro uma questão pessoal. Ele está em cima de mim, abisma-se mais uma vez. Ficamos assim, pregados, a gemer no clamor da cidade ainda exterior.
Marguerite Duras
segunda-feira, 14 de maio de 2012
Chamo por ti e o teu nome ilumina as coisas mais simples
mazzy star | fade into you
Procuro a ternura súbita,os olhos ou o sol por nascer do tamanho do mundo,
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque com a forma de um grito de alegria.
Ou a carícia da terra,
a juventude suspensa,
a fugidia voz da água
entre o azul do prado e de um corpo estendido.
Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.
Chamo por ti e o teu nome
ilumina as coisas mais simples:
o pão e a água,
a cama e a mesa,
os pequenos e dóceis animais,
onde também quero que chegue
o meu canto e a manhã de maio.
Um pássaro e um navio são a mesma coisa
quando te procuro de rosto cravado na luz.
Eu sei que há diferenças
mas não quando se ama,
não quando apertamos contra o peito
uma flor ávida de orvalho.
Ter só dedos e dentes é muito triste:
dedos para amortalhar crianças,
dentes para roer a solidão,
enquanto o verão pinta de azul o céu
e o mar é devassado pelas estrelas.
Porém eu procuro-te.
Antes que a morte se aproxime, procuro-te.
Nas ruas, nos barcos, na cama,
com amor, com ódio, ao sol, à chuva,
de noite, de dia, triste, alegre
– procuro-te.
Eugénio de Andrade
And i will wait in sight for you to call in purple night
future islands | the great fire
Não sei para que lado da noite me hei-de viraronde esconder de ti o rio de fogo das lágrimas
quase a transbordar e acendo mais um cigarro
e falo atabalhoadamente de um futuro qualquer
e suspiro de alívio porque não ouves o que digo
ou se calhar também não sabes onde te esconderes
esperamos que se ilumine o lado certo da noite
é quando se esgotam as palavras e os silêncios
e a minha mão procura a tua que a recebe
e a noite se unifica e todos os rios secam
menos um por onde navegamos
para abolir a noite.
Carlos Alberto Machado
We're just two lost souls swimming in a fish bowl year after year
Sentados no carro numa fila,
com o rádio ligado, gases de escape
e música, uma canção ele diz
que acha bonita, sobre
violinos em fogo e uma dança que continua
até ao fim do amor.
Não pela canção mas pelo que ele diz
ela não consegue olhá-lo.
Agora há no carro uma coisa a mais:
música e gases de escape e embaraço.
Embaraço porque a dança
até ao fim do amor dura tempo de mais,
entra demais no passado
e no futuro, a alma
salta-lhe do peito, de repente tão desamparada,
ela diz apenas: Sentimental.
Sim, diz ele, sentimental.
Ela nunca saberá se ele sabe
como ela sentiu essa palavra.
Ele nunca saberá o que ela
entendeu, até que ponto,
ela nunca saberá que ele
entendeu que ela entendeu
o que o transiu de repente, só se
alguém, talvez um historiador,
reconstituir mais tarde exactamente o que sentiam
as pessoas com rádios a tocar nas filas.
Judith Herzberg
domingo, 13 de maio de 2012
Das gaivotas
Porque motivo apenas te aproximas de mim quando queres fazer amor? No resto do tempo chegas do banco e és só jornal e calças no sofá, se tento falar-te o jornal treme de zanga, sobe mais um pouco, as pernas cruzam-se, impacientes, em sentido contrário, o sapato fica a dar e dar no vazio, toco-te e encolhes-te, faço-te uma festa no cabelo e a cabeça diminui de tamanho, arrepiada, um protesto ronca das notícias
- O que foi agora? - Já nem se pode ler em paz? - Fazes o favor de não me despentear?
jantas calado a rolar bolinhas de pão entre suspiros, desapareces antes que eu acabe de comer, nem uma palavra para a minha saia nova, uma pergunta sobre como me correu o dia nas finanças, um beijo, ficas de mãos nos bolsos a olhar o prédio em frente, atiras o canal para o desporto quando começa a novela, aborreces-te do desporto, carregas no botão e reaparece a novela
- Olha essa porcaria à tua vontade
tudo te enjoa, te aborrece, te cansa e uma vez por semana, quando já estou meia a dormir, o teu braço a arrepelar-me, o ombro que me aleija, uma vertigem rápida, um camião a abanar o prédio na rua, eu a fixar os números luminosos do despertador ao lado das tuas costas indiferentes, o que aconteceu, amor, para mudares assim tanto
(- Não mudei nada, que mania)
ao conhecermo-nos, há dez, minto, há onze anos, chegavas-te a mim embrulhado em vénias de timidez, a ensaboar as mãos, com o sorriso borboleteando em volta da boca sem se atrever a poisar
- Um dia destes convido-a para um café, menina Clara
tão atencioso, tão terno, tão preocupado comigo, a notar quando eu mudava de brincos, de penteado, de anel
- Que bem lhe fica a franja, menina Clara
o meu pai simpatizou logo contigo por te levantares, com o tal sorriso a adejar, mal eu entrava na sala, o que aconteceu, amor, para mudares assim tanto
(- E ela a dar-lhe, que gaita)
descíamos para a muralha do rio, em Novembro, com as gaivotas todas na praia, corríamos de mão dada a assustar os pássaros, achavas-me graça, achavas-me bonita, dizias que eu ficava linda a correr
- Parece mesmo uma gaivota, sabia?
que qualquer dia me escapava de ti, a bater as asas no rasto de um cargueiro turco, perguntavas-me ao ouvido, aflitissimo, ansioso
- Nunca me deixa, pois não?
(- As fantasias que tu vais buscar, meu Deus)
apertavas-me tanto pela cintura que quase não conseguia respirar, por favor explica-me o que fiz de mal para mudares assim tanto, ainda sou capaz de correr da mesma maneira se voltarmos à praia em Novembro, que é feito do teu sorriso e do ensaboar das mãos, ponho um baton diferente, a blusa decotada, os sapatos que nunca me atrevi a usar para os homens não se meterem comigo na avenida
- Ainda há quem me ache engraçada, sabias?
(- Pois que lhes faça muito bom proveito)
desço lá abaixo à muralha e fico no meio das gaivotas à espera que chegues
(- Agora deste em maluca ou quê?)
sem jornal, sem caretas, sem bolinhas de pão, a convidares-me, nervoso, para um café na esplanada, soprando pelo meio do sorriso que não pare, que não pare
- Apetece-me tanto dar-lhe um beijo, Clarinha
(- As parvoíces que a gente diz em novo, senhores)
e nisto, não sei se deste conta, as gaivotas sumiram-se todas e ficamos sozinhos, amor, só a praia e as ondas e eu tão contente, tão com a certeza
- ainda tenho a certeza
(- Cada qual tem as certezas que quer)
de sermos felizes para sempre, de podermos ser felizes se um dia me deixares; deixas não deixas, aposto que deixas,
(- Que teimosia, que insistência, já é cisma, caramba)
abraçar-te.
António Lobo Antunes
Éramos uma invenção tão boa
blonde redhead | elephant woman
As tuas coxas das minhas ancas.
Tanto quanto sei
São todos cirurgiões. Todos eles.
Eles desmantelaram-nos
Um ao outro
Tanto quanto sei
São todos engenheiros. Todos eles.
Que pena. Éramos uma invenção
Tão boa e tão amável.
Um aeroplano feito de um homem e de uma mulher.
Com asas e tudo.
Pairávamos ligeiramente por cima da terra.
Até voávamos um pouco.
Yehuda Amichai
terça-feira, 8 de maio de 2012
Break my arms around the one i love
Costumava gostar da chuva. Fria, violenta e torrencial. Do mar bravo a bater nas rochas desprotegidas. Das janelas abertas, de todas as luzes apagadas e do barulho do vento a perpassar as cortinas do quarto escuro. Das horas longas a atravessar as noites mal dormidas e do cansaço a vencer todos os impedimentos. Dos violinos melancólicos e da poesia mais triste e dolorosa. Lembro-me de suspirar com as histórias de amor contadas nos livros para as esquecer sem demora. A felicidade não se escreve, pensava eu. Eu que sempre li para dentro, com a voz miudinha, e me acostumei à solidão dos dias vazios preenchidos somente por viagens interiores. Eu costumava gostar do silêncio, a sério. Mas isso foi antes de te conhecer. Hoje sinto-me cansada dos invernos que vivi, que não revelei a ninguém. Sinto falta do sol, dos dias compridos que ainda não chegaram, das noites quentes e intermináveis, dos filmes tão certeiros, tão intensamente reais, tão nossos de tão verdadeiros. Agora deixo-me derreter no teu abraço, dou gargalhadas a cada cinco segundos, até acho que sou engraçada, vê lá. Finjo escusadamente que não estremeço quando sinto o teu toque na minha perna, não posso sequer denunciar que me belisco a cada instante para ter a certeza que tu és verdade. Faz de conta que não sou um desastre na cozinha, que o meu problema de expressão é coisa passageira e que já amanhã vou conseguir dizer que te amo com a maior espontaneidade do mundo, com todas as letras, sem tremer por dentro. Como se eu não tivesse sido imperfeita a vida toda, toda a vida. Porque continuo sem saber o que fazer das palavras que me querem nascer na boca, ou o que fazer das mãos que não sabem como alcançar-te. Continuo a gostar de insónias porque agora tenho a sorte de poder ver-te dormir. Sei que posso adormecer tranquila. Fecho os olhos e consigo imaginar os teus, tão claros, de sonhador a alumiar a escuridão. Mesmo nestas noites de primavera zangada. Depois sorrio sem qualquer razão que me valha. Com as minhas mãos a acariciar-te o rosto. Nesses momentos rezo para que, pelo menos assim, consigas adivinhar o muito amor que te tenho. E fazer de conta que nunca fui triste.
Someday you will feel a love so deep and you'll find someone not lost in sleep
Primeiro foi o bule,
de seguida foi a asa.
Que mais irás quebrar.
Não sei o que fazer com o teu sim,
o teu não, o teu
passa-me o açúcar.
A distância dos teus olhos não a sei
abreviar, o latido dos teus sonhos
não me deixa adormecer.
Gostava de te amar um pouco menos,
de voltar ao meu rebanho
de feridas e sopores,
regressar ao rijo barro dos Domingos
em que não te conhecia,
ao supor de suas tardes
Quando ainda não sabia
Da dureza do cimento, nem dos modos
De quebrar e ser quebrado.
José Miguel Silva
segunda-feira, 7 de maio de 2012
Infinity stretches unlimitlessly
a escrita e todas as paisagens
viajar no combóio-correio da noite
repisar tua sombra oblíqua naqueles areais
cercado de água morder o coral do medo
onde tua ausência se quebra… migrar
com as marés da noite para regiões onde o sonho existe
fora de ti
uma cerveja outra e outra
para que um sorriso se revele na embriaguez da despedida
abro um livro:
uma só coisa é necessária: a solidão, a grande solidão interior. Caminhar
em si próprio e, durante horas, não encontrar ninguém – é a isto que é preciso chegar.
não consigo ler mais… fecho os olhos
a paisagem desaparece num rápido e desfocado adeus
penso voltar
e sei que mentira desperta já em mim
recosto-me profundamente no assento… desafio o sono
invade-me a ânsia do eterno viajante
combóios barcos que vão para onde?
esperem por mim
eu vou
Al Berto
Experimento um grito contra o teu silêncio
radiohead | high and dry
De sonho e assalto
Subindo ao teu corpo real
Recordo-te
E és a mesma
Ternura quase impossível
De suportar
Por isso fecho os olhos
(O amor faz-me recuperar incessantemente o poder da
provocação. É assim que te faço arder triunfalmente
onde e quando quero. Basta-me fechar os olhos)
Por isso fecho os olhos
E convido a noite para a minha cama
Convido-a a tornar-se tocante
Familiar concreta
Como um corpo decifrado de mulher
E sob a forma desejada
A noite deita-se comigo
E é a tua ausência
Nua nos meus braços
Experimento um grito
Contra o teu silêncio
Experimento um silêncio
Entro e saio
De mãos pálidas nos bolsos
Assobio às pequenas esperanças
Que vêm lamber-me os dedos
Perco-me no teu retrato
Horas seguidas
E ao trote do ciúme deito contas
Deito contas à vida.
Alexandre O'Neill
O meu amor anda por dentro do silêncio a formular loucuras com a nudez do teu nome
beck | true love will find you in the end (daniel johnston cover)
O meu amor não cabe num poema - há coisas assim,que não se rendem à geometria deste mundo;
São como corpos desencontrados da sua arquitectura
ou quartos que os gestos não preenchem.
O meu amor é maior que as palavras; e daí inútil
a agitação dos dedos na intimidade do texto -
a página não ilustra o zelo do farol que agasalha as baías
nem a candura da mão que protege a chama que estremece.
O meu amor não se deixa dizer- é um formigueiro
que acode aos lábios como a urgência de um beijo
ou a matéria efervescente dos segredos; a combustão
laboriosa que evoca, à flor da pele, vestígios
de uma explosão exemplar: a cratera que um corpo,
ao levantar-se, deixa para sempre na vizinhança de outro corpo.
O meu amor anda por dentro do silêncio a formular loucuras
com a nudez do teu nome - é um fantasma que estrebucha
no dédalo das veias e sangra quando o encerram em metáforas.
Um verso que o vestisse definharia sob a roupa
como o esqueleto de uma palavra morta. Nenhum poema
podia ser o chão da sua casa.
Maria do Rosário Pedreira
domingo, 6 de maio de 2012
Aprendiz de viajante
dead can dance | the host of seraphim
Um dia li num livro:
viajar cura a melancolia.
Creio que, na altura, acreditei no que lia.
Estava doente, tinha quinze anos.
Não me lembro da doença que me levara à cama,
recordo apenas a impressão que me causara,
então, o que acabara de ler.
Os anos passaram - como se apagam as estrelas cadentes
e, ainda hoje, não sei se viajar cura a melancolia. No entanto,
persiste em mim aquela estranha impressão de que lera uma predestinação.
A verdade é que desde os quinze anos nunca mais parei de viajar.
Atravessei cidades inóspitas, perdi-me entre mares e desertos,
mudei de casa quarenta e quatro vezes e conheci corpos que deambulavam pela vaga noite...
Avancei sempre, sem destino certo.
Tudo começou a seguir àquela doença.
Era ainda noite fechada. Levantei-me e parti.
Fui em direcção ao mar. Segui a rebentação das ondas,
apanhei conchas, contornei falésias; afastei-me de casa o mais que pude.
Vi a manhã erguer-se, branca, e envolver uma ilha;
vi crepúsculos e noite sobre um rio, amei a existência.
Dormia onde calhava; no meio das dunas, enroscado no tojo,
como um animal; dormia num pinhal ou onde me dessem abrigo,
em celeiros, garagens abandonadas, uma cama...
e quando regressei, com a ânsia do eterno viajante dentro de mim.
Hoje sei que o viajante ideal é aquele que, no decorrer da vida,
se despojou das coisas materiais e das tarefas quotidianas.
Aprendeu a viver sem possuir nada, sem um modo de vida.
Caminha, assim, com a leveza, de quem abandonou tudo.
Deixa o coração apaixonar-se pelas paisagens enquanto a alma,
no puro sopro da madrugada, se recompõe das aflições da cidade.
A pouco e pouco, aprendi que nenhum viajante vê o que os outros viajantes,
ao passarem pelos mesmos lugares, vêem.
O olhar de cada um, sobre as coisas do mundo é único,
não se confunde com nenhum outro.
Viajar, se não cura a melancolia, pelo menos,
purifica. Afasta o espírito do que é supérfluo e inútil;
e o corpo reencontra a harmonia perdida - entre o homem e a terra.
O viajante aprendeu, assim, a cantar a terra, a noite e a luz,
os astros, as águas, os peixes e a treva, os peixes, os pássaros e as plantas.
Aprendeu a nomear o mundo.
Separou com uma linha de água o que nele havia de sedentário daquilo que era nómada;
sabe que o homem não foi feito para ficar quieto.
A sedentarização empobrece-o, seca-lhe o sangue,
mata-lhe a alma - estagna o pensamento.
Por tudo isto, o viajante escolheu o lado nómada da linha de água.
Vive ali, e canta - sabendo que a vida não terá sido um abismo,
se conseguir que o seu canto, ou estilhaços dele,
o una de novo ao Universo.
Al Berto
viajar cura a melancolia.
Creio que, na altura, acreditei no que lia.
Estava doente, tinha quinze anos.
Não me lembro da doença que me levara à cama,
recordo apenas a impressão que me causara,
então, o que acabara de ler.
Os anos passaram - como se apagam as estrelas cadentes
e, ainda hoje, não sei se viajar cura a melancolia. No entanto,
persiste em mim aquela estranha impressão de que lera uma predestinação.
A verdade é que desde os quinze anos nunca mais parei de viajar.
Atravessei cidades inóspitas, perdi-me entre mares e desertos,
mudei de casa quarenta e quatro vezes e conheci corpos que deambulavam pela vaga noite...
Avancei sempre, sem destino certo.
Tudo começou a seguir àquela doença.
Era ainda noite fechada. Levantei-me e parti.
Fui em direcção ao mar. Segui a rebentação das ondas,
apanhei conchas, contornei falésias; afastei-me de casa o mais que pude.
Vi a manhã erguer-se, branca, e envolver uma ilha;
vi crepúsculos e noite sobre um rio, amei a existência.
Dormia onde calhava; no meio das dunas, enroscado no tojo,
como um animal; dormia num pinhal ou onde me dessem abrigo,
em celeiros, garagens abandonadas, uma cama...
e quando regressei, com a ânsia do eterno viajante dentro de mim.
Hoje sei que o viajante ideal é aquele que, no decorrer da vida,
se despojou das coisas materiais e das tarefas quotidianas.
Aprendeu a viver sem possuir nada, sem um modo de vida.
Caminha, assim, com a leveza, de quem abandonou tudo.
Deixa o coração apaixonar-se pelas paisagens enquanto a alma,
no puro sopro da madrugada, se recompõe das aflições da cidade.
A pouco e pouco, aprendi que nenhum viajante vê o que os outros viajantes,
ao passarem pelos mesmos lugares, vêem.
O olhar de cada um, sobre as coisas do mundo é único,
não se confunde com nenhum outro.
Viajar, se não cura a melancolia, pelo menos,
purifica. Afasta o espírito do que é supérfluo e inútil;
e o corpo reencontra a harmonia perdida - entre o homem e a terra.
O viajante aprendeu, assim, a cantar a terra, a noite e a luz,
os astros, as águas, os peixes e a treva, os peixes, os pássaros e as plantas.
Aprendeu a nomear o mundo.
Separou com uma linha de água o que nele havia de sedentário daquilo que era nómada;
sabe que o homem não foi feito para ficar quieto.
A sedentarização empobrece-o, seca-lhe o sangue,
mata-lhe a alma - estagna o pensamento.
Por tudo isto, o viajante escolheu o lado nómada da linha de água.
Vive ali, e canta - sabendo que a vida não terá sido um abismo,
se conseguir que o seu canto, ou estilhaços dele,
o una de novo ao Universo.
Al Berto
quarta-feira, 2 de maio de 2012
Tell yourself over and over you won't ever need her again *
Lembras-te Fátima? era o que eu sempre te dizia, não somos nada nas mãos do acaso, e não há mais filosofia do que esta: deixar andar, tanto faz, hoje ou amanhã morremos todos, daqui a cem anos que importância tem isto, quem se lembrará de nós? quem se lembrará de mim? se nem tu já te lembras de mim agora, tu, a quem tanto amei, não te lembras, e foi há tão pouco, foi ontem, parece, que te levantaste e disseste: Ficamos amigos como dantes... E dizias: como dantes e era já noutro que pensavas, olhavas-me e nos teus olhos ria-se a traição, o prazer da liberdade, um desafio alegre, uma alegria provocante e desapiedada, ias a meu lado pela última vez e eu era já um estranho para ti, um fantasma a quem se concede, por caridade, uns momentos mais de companhia, algumas palavras vagas distraídas, um pouco de estima, talvez. Reparei: o teu corpo, oh corpo do meu prazer! oh carne virgem sangrando debaixo de mim! oh meu repouso e minha febre! o teu corpo outrora tão cativo e tão submisso, ficara de repente cerimonioso e esquivo, cauteloso, afastado, com um pudor forçado no puxares a saia sobre os joelhos, como se tivesse uma grande vergonha do despudor com que se dera antes...
Dizias: como dantes e não era já nisso que pensavas, e não era já para mim que falavas, eu era uma coisa para esquecer, para deitar fora, uma coisa que se abandona caída no chão e se perde sem pena. Dizias: adeus e saías da minha vida com um aperto de mão desembaraçado, quase cordial um gesto de boa camarada, como se nada tivesse havido antes, como se não tivéssemos sido tantas vezes na cama, um dentro do outro, um no outro, um-outro diferente, uma coisa sublime: Deus Criador, como os míseros humanos só ali o podem sentir e saber; um Outro que éramos nós ainda, mas tão transtornados, tão virados para fora de nós, tão esquecidos do mundo e de nós, tão eficazes, tão leais, nós boca com boca, corpo a corpo, um sexo torturando um sexo, mordendo-se devorando-se, numa febre de chegar ao fim depressa, ao esquecimento, ao repouso. Disseste: adeus e eu odiei-te logo nesse minuto, como te odeio agora, não por ti ou pelo teu corpo que já me esqueceu noutros que vieram depois, mas porque morri ali naquela palavra, - morri entendes? -, perdi-me numa grande confusão, esqueci-me de ser eu, fiquei roubado do meu passado.
Hoje, encontrarias um outro homem; havia de rir-me do teu corpo, da sua entrega ou das suas traições, de tu me dizeres: Vem ou Adeus..., ou Não quero.... Hoje, saberias quem fizeste com uma só palavra, conhecerias um outro homem, que é obra tua, minha segunda mãe! Hoje, havia de rir ou chorar, era a máscara do momento; mas diria: tanto faz..., tanto me faz... Sabia-o!
Luiz Pacheco
terça-feira, 1 de maio de 2012
Complicações de luas e saliva
nick cave & the bad seeds | shoot me down
para te dizer, com a simplicidade do bater do coração,
que afinal ao pé de ti apenas sinto as mãos mais frias
e esta ternura dos olhos que se dão.
Nem asas, nem estrelas, nem flores sem chão
- mas o desejo de ser a noite que me guia
e baixinho ao bafo da tua respiração
contar-te todas as minhas covardias.
Ao pé de ti não me apetece ser herói
mas abrir-te mais o abismo que me dói
nos cardos deste sol de morte viva.
Ser como sou e ver-te como és:
dois bichos de suor com sombra aos pés.
Complicações de luas e saliva.
José Gomes Ferreira
Subscrever:
Mensagens (Atom)