quinta-feira, 20 de junho de 2013

Let's just breathe






















pearl jam | just breathe

Há ainda este inverno que não se desentranha de mim, que parece querer ficar para lá de toda a felicidade e é silêncio, um assustador silêncio que nos invade os dias e as noites e vai cobrindo o meu cansaço. Há esta frieza no corpo que permanece, que exige atenção mas esquece a tua mão no meu cabelo e o meu coração indefeso. Há ainda esta dor sem nome nem queixume, o suspiro guardado no fundo do peito que implora uma saída e não sabe como nem porquê. Eu a medir a tua respiração, a conviver lado-a-lado com uma revolta mesquinha que insiste baixinho em destruir tudo, o ciúme a minar o amor e eu a ver, a deixar-me arrastar por ele. Vai ficar tudo bem, era só isto, bastava uma palavra tua, mais nada. Houve um tempo em que o entusiasmo não escasseava, - e tu - tu ainda sorrias para mim. Depois de todos os vestidos brancos. E eu agora na minha tão breve esperança de que ainda me ames. Mas ficámos só nós dois, eu e o vazio, a inventar sonhos antigos.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Um doer com lágrimas






















the smiths | there is a light that never goes out

se ao menos esta dor servisse
se ela batesse nas paredes
abrisse portas
falasse
se ela cantasse e despenteasse os cabelos
se ao menos esta dor visse
se ela saltasse fora da garganta
como um grito
caísse da janela fizesse barulho
morresse
se a dor fosse um pedaço de pão duro
que a gente pudesse engolir com força
depois cuspir saliva fora
sujar a saliva fora
sujar a rua os carros o espaço o outro
esse outro escuro que passa indiferente
e que não sofre e tem o direito de não sofrer
se a dor fosse só a carne do dedo
que se esfrega na parede de pedra
para doer visível
doer penalizante
doer com lágrimas
se ao menos essa dor sangrasse…

Renata Palottini

domingo, 16 de junho de 2013

Ninguém nos vê passar





















air | alone in kyoto

Tornamo-nos impermeáveis na solidão:
dentro da pele não viaja ninguém;
fora da pele ninguém nos vê passar.

Jesús Jiménez Domínguez

sábado, 15 de junho de 2013

Um pequeno absurdo às vezes chega para salvar





















tori amos | winter

Dai-nos, meu Deus, um pequeno absurdo quotidiano que seja,
que o absurdo, mesmo em curtas doses,
defende da melancolia e nós somos tão propensos a ela!
Se é verdade o aforismo faca afia faca
(não sabemos falar senão figuradamente
sinal de que somos pouco capazes de abstracção).
Se faca afia faca,
então que a faca do absurdo
venha afiar a faca da nossa embotada vontade,
venha instalar-se sobre a lâmina do inesperado
e o dia a dia será nosso e diferente.
Aflições? Teremos muitas não haja dúvida.
Mas tudo será melhor que este dia a dia.
Os povos felizes não têm história, diz outro aforismo.
Mas nós não queremos ser um povo feliz.
Para isso bastam os suíços, os suecos, que sei eu?
Bom proveito lhes faça!
Nós queremos a maleita do suíno,
a noiva que vê fugir o noivo,
a mulher que vê fugir o marido,
o órfão que é entregue à caridade pública,
o doente de hospital ainda mais miserável que o hospital
onde está a tremer, a um canto, e ainda ninguém lhe ligou
nenhuma. Nós queremos ser o aleijado nas ruas, a pedir esmola, a
a bardalhar-se frente aos nossos olhos. Queremos ser o pai
desempregado que não sabe que Natal Dai-nos, meu Deus…
há-de dar aos seus.
Garanti-nos, meu Deus, um pequeno absurdo cada dia.
Um pequeno absurdo às vezes chega para salvar.

Alexandre O’Neill

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Entre duas mãos





trespassers william | my hands up

Podia ser aí. Contigo. Com o teu corpo
ainda nu, ou vestido da luz que entra pelas
persianas velhas, trazendo a tremura
das folhas na trepadeira do quintal.

Podia ser de manhã, ou de madrugada,
sabendo que teria de te abraçar para que não
desses pelo frio, com o quarto ainda
húmido da noite, num fim de outono.

Podia não ter sido nunca, se não fossem
assim as coisas: a tua mão ao encontro da
minha, no tampo da mesa, como se fosse
aí que tudo se jogasse, entre duas mãos.

Nuno Júdice

domingo, 9 de junho de 2013

A vida responsável






















cocorosie | by your side

Conduzir mas sem ter um acidente,
comprar massas e desodorizantes
e cortar as unhas às minhas filhas.
Madrugar outra vez e ter cuidado
em não dizer inconveniências,
esmerar-me na prosa de umas folhas
e estou-me nas tintas para elas,
retocar de vermelho cada face.
Lembrar-me da consulta ao pediatra,
responder ao correio, estender roupa,
declarar rendimentos, ler uns livros,
fazer umas chamadas telefónicas.
Bem gostaria de me dar ao luxo
de ter o tempo todo que quisesse
para fazer só coisas esquisitas,
coisas desnecessárias, prescindíveis
e, sobretudo, inúteis e patetas.
Por exemplo, amar-te com loucura.

Amalia Bautista