domingo, 27 de dezembro de 2015

Something tells me you can read my mind
























morphine | good

Disse-to pelas nuvens
Disse-to pela árvore do mar
Por cada onda pelos pássaros nas folhas
Pelos calhaus do ruído
Pelas mãos familiares
Pelos olhos que se volvem rosto ou paisagem
E o sono dá-lhe o céu da sua cor
Por toda a água da noite
pelas linhas das estradas
Pela janela aberta por uma fronte descoberta
Disse-to pelos teus pensamentos pelas tuas palavras
Toda a carícia toda a confiança sobrevivem.

Paul Éluard

sábado, 12 de dezembro de 2015

I who have died am alive again today
























leonard cohen | bird on the wire

i thank You God for most this amazing
day: for the leaping greenly spirits of trees
and a blue true dream of sky; and for everything
which is natural which is infinite which is yes
(i who have died am alive again today,
and this is the sun’s birthday; this is the birth
day of life and of love and wings: and of the gay
great happening illimitably earth)
how should tasting touching hearing seeing
breathing any–lifted from the no
of all nothing–human merely being
doubt unimaginable You?
(now the ears of my ears awake and
now the eyes of my eyes are opened)

e.e. cummings

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

E agora?













mazzy star | mary of silence

Que silêncio tão grande. No interior do silêncio mais silêncio e no interior do mais silêncio um relógio minúsculo a anunciar
– Já é tarde, já é tarde
de forma que nem reparamos nos ponteiros. Para quê se o relógio insiste
– Já é tarde, já é tarde
e nós a olharmos uns para os outros, inquietos
– O que diz o relógio?
apesar de termos ouvido perfeitamente a sua vozinha apressada, nós de súbito com medo
– Tarde?
e o que significa tarde meu Deus, o que pretende o relógio? Mesmo tapando as orelhas com as mãos a teimosia permanece
– Já é tarde
mesmo não escutando mais nada escutamos o
– Já é tarde
não sabemos se no relógio se no interior da gente, olhamos em volta, olhamos para dentro à procura, achamos episódios antigos, um triciclo, um avô a espantar-se
– O que tu cresceste
um colar de pérolas
(de quem?)
numa tacinha, achamos a nossa vida de hoje e qual o sentido da nossa vida de hoje, o que fazemos com ela, dias atrás de dias, o supermercado, o jantar no restaurante aos domingos, a maçada das crianças às vezes e não era bem isto que nos apetecia, não era bem isto o que tínhamos desejado, falta qualquer coisa, onde é que errámos, o que falhámos, não somos infelizes mas também não temos o que secretamente ansiávamos, os anos vão passando ...

... (– o que tu cresceste)
e não temos o que secretamente ansiávamos, de vez em quando momentos tão vazios, de vez em quando, mesmo no meio dos outros, uma solidão tão grande, um desamparo, uma sensação de queda, esta dificuldade em respirar, porque a mobília sufoca, que vem e desaparece e volta, de vez em quando, sem motivo, vontade de chorar, não lágrimas grandes, não soluços, uma coisa vaga, uma pergunta
– E agora?
sem resposta, caras familiares que se tornam estranhas, se te abraçar continuo sozinho, o que se passa comigo, o que se passa connosco, o relógio prossegue
– Já é tarde
monótono, acusador, implacável, os objectos quietinhos sem nos ajudarem
– Porque não nos ajudam?
Nada nos ajuda, é tarde, tentamos conversar e é tarde, fazemos amor e é tarde apesar de termos feito amor na esperança que não seja tarde e depois, em lugar do prazer, ou misturado com o prazer, ou mais forte que o prazer, uma espécie de amargura que persiste, se não dilui, persiste, o
– E agora?
sem resposta aumenta, um
– E agora?
imenso, que horror, um
– E agora?
que nos preenche inteiros, se nos pegassem ao colo, fugissem connosco, nos garantissem
– Não é tarde ainda
e pudéssemos acreditar que não é tarde ainda, tranquilizar-nos afirmando
– Não é tarde ainda
embora cientes que mentimos
– Não é tarde ainda
e tornar a mentira verdade, que outra coisa fizemos para além de tentarmos transformar as mentiras em verdades, não há ninguém mais crédulo que um desesperado
– O que tu cresceste
e em que direcção cresci que não dou por ter crescido, lá está o triciclo, lá está o avô, lá está o colar, os frascos de perfume que cheirávamos às escondidas, os cigarros que fumávamos secretamente no quintal, cresci para onde, cresci como, se nos metermos no carro, se almoçarmos fora, se te pegar na mão melhoramos e contudo ficamos parados a teimar no silêncio
(que silêncio tão grande)
– Já é tarde
e não é o relógio, somos nós
– Já é tarde
não noite ainda e contudo tão tarde, aproximamo-nos da janela, os prédios do costume na rua
(esperavas outros prédios, outro bairro?)
e tão tarde, ganas de apanhar aquele cinzeiro e quebrá-lo no chão, de que serve apanhar aquele cinzeiro e quebrá-lo no chão, no espelho a nossa cara
– O que tu cresceste
diferente, a nossa cara e diferente, porquê diferente, o que é isto nos olhos, o que é isto na boca, a boca a ecoar
– Tarde
tal como os olhos ecoam
– Tarde
todo o corpo a afirmar
– Tarde
e quando o
– Tarde
diminui, o
– E agora?
a dilatar-se nele, o
– E agora?
imenso, sentamo-nos no sofá com uma revista, o jornal, um livro e as mãos vazias, apertamo-las uma na outra, espreitamos o triciclo, a certeza que se pedalássemos muito depressa não seria tarde, pedalar mais depressa que o relógio, os episódios antigos, aquela parente que nos oferecia rebuçados cujo papel não descolava e se nos prendia aos dentes, tentávamos retirar o papel com a unha e não saía, ainda nos lembramos do gosto do papel na língua, largamos a revista, o jornal, o livro, e ficamos no sofá, tanto tempo passado, com o papel na língua, a mastigá-lo, a mastigá-lo, a mastigá-lo, no fundo da gente nós mesmos a acusarmo-nos
– Porque me tornaste nisto?
o silêncio aumentou tanto que o relógio se calou, uma palma no nosso ombro
– O que foi?
e construímos peça a peça um sorriso difícil
(custa tanto um sorriso)
que responde por nós
– Não foi nada.

António Lobo Antunes

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

She cried


















rowland s. howard | she cried

Depois de ter cortado todos os braços que se estendiam para mim; depois de ter entaipado todas as janelas e todas as portas; depois de ter inundado os fossos com água envenenada; depois de ter edificado minha casa num rochedo inacessível aos afagos e ao medo; depois de ter lançado punhados de silêncio e monossílabos de desprezo a meus amores; depois de ter esquecido meu nome e o nome da minha terra natal; depois de me ter condenado a perpétua espera e a solidão perpétua, ouvi contra as pedras de meu calabouço de silogismos a investida húmida, terna, insistente, da Primavera.

Octavio Paz

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Quartos
















morrissey | you have killed me

i entered nothing and nothing entered me
'til you came with the key
and you did your best but
as i live and breathe
you have killed me

passaram alguns meses depois de ter decorado o teu rosto
passaram alguns dias depois de saber o teu nome,
passaram algumas horas depois de deixar o teu quarto.
do meu quarto ao teu quarto o tempo é um corredor sombrio
que  flutua na margem das imagens.
encontro-me deitada sobre o manto suave da espera, encontro os meandros
de um academismo fétido
um manto suave ruidoso que me consome a espera, que me arde pela espera,
embora não esteja à espera de nada, concretamente, a não ser, talvez,
de mais espera.
por dentro atravessa -me uma canalização fragilizada pelos anos.
a pele do medo faz-me escorrer pelo quarto
ou serão estas paredes rachadas pela humidade que me inundam as ideias?
na voz sinto o peso dos móveis e o peso de todas
as impressões digitais de todos os outros estudantes que como eu os utilizaram.
na boca, a memória salgada de ti, ou a memória salgada
daquilo que penso que sejas,
daquilo que eu gostaria que fosses,
daquilo que eu gostaria de ser com aquilo que eu gostaria que fosses.
o medo a contrariar a idade, o elogio do pessimismo pousado sobre a cómoda
e já passaram alguns minutos depois de te começar a odiar.

Sara F. Costa

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Hoje parece que sempre choveu sobre mim
















the national | about today

Às vezes paro à porta com o olhar perdido e habituado ao silêncio, há mais desertos ainda, dias e morte noutros olhos. Com a garganta habituada à sede, com os pés às feridas, saio para a rua e já não há umbrais. Ando um dia, passo outro, acabo uma semana de vidros partidos e tosse mais velha. Hoje parece que sempre choveu sobre mim, e não me importa se a chuva já não se parece ao esquecimento e apenas deixa charcos, paredes mais sujas e fuligem e tristeza nos olhos de rímel, ainda tenho sede e não me importa voltar às coisas más e aos velhos tugúrios à procura de algo que não encontro nem recordo, que costuma principiar por um encontro, talvez por outra palavra e corre o perigo de crispar-se até à forma da folha da faca. Às vezes tudo é tão estranho que não basta continuar a andar.

Alfonso Barrocal

What can i possibly say? I guess that i miss you, i guess i forgive you, i'm glad you stood in my way.
















leonard cohen | famous blue raincoat

É porque existe o desejo, o olfacto, e o medo, e os vivos apaixonam-se por outros vivos,
e lembram-se, por vezes, do enorme número de mortos;
e dentro destes há alguns que os fazem desligar a luz e o trabalho,
e o quotidiano aí já não basta,
porque o coração tem em certos dias um orçamento incomportável.

Gonçalo M. Tavares