quarta-feira, 25 de julho de 2012

Bring peace to my black and empty heart

pj harvey | the dancer


Por vezes ouvia música. Só ela ouvia música; aliás, era ela que escolhia, mentalmente, as músicas que ouvia, ouvia secretamente essas músicas. E dançava com essas músicas; dançava com os olhos, com movimentos de cabeça, com os braços. Podia estar a ouvir pessoas e estar, ao mesmo tempo, a dançar essas músicas. Dançava; às vezes, por dentro de si mesma.

Baptista Bastos


(e por mais que escreva, a vida não se faz aqui.)

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Um ano: um diário destes não magoa

jeff buckley | new year's prayer


Todas as palavras,

as que procurei em vão,
principalmente as que estiveram muito perto,
como uma respiração, e não reconheci,
ou desistiram e partiram para sempre,
deixando no poema uma espécie de mágoa
como uma marca de água impresente;
as que (lembras-te?) não fui capaz de dizer-te
nem foram capazes de dizer-me;
as que calei por serem muito cedo,
as que calei por serem muito tarde,
e agora, sem tempo, me ardem;
as que troquei por outras (como poderei
esquecê-las desprendendo-se longamente de mim?);
as que perdi, verbos e substantivos de que
por um momento foi feito o mundo.
E também aquelas que ficaram,
por cansaço, por inércia, por acaso,
e com quem agora, como velhos amantes sem
desejo, desfio memórias,
as minhas últimas palavras.

Manuel António Pina


(um ano de palavras. desprendendo-se longamente de mim.)

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Don't patronize me

bon iver | i can't make you love me

Vais crescendo, meu filho, com a difícil luz do mundo. Não foi um paraíso, que não é medida humana, o que para ti sonhei. Só quis que a terra fosse limpa, nela pudesses respirar desperto e aprender que todo homem, todo, tem direito a sê-lo inteiramente até ao fim. Terra de sol maduro, redonda terra de cavalos e maçãs, terra generosa, agora atormentada no próprio coração; terra onde teu pai e tua mãe amaram para que fosses o pulsar da vida, tornada inferno vivo onde nos vão encurralando o medo, a ambição, a estupidez, se não for demência apenas a razão; terra inocente, terra atraiçoada, em que nem sequer é já possível pousar num rio os olhos de alegria, e partilhar o pão, ou a palavra; terra onde o ódio a tanta e tão vil besta fardada é tudo o que nos resta; abutres e chacais que do saber fizeram comércio tão contrário à natureza que só crimes e crimes e crimes pariam.

Que faremos nós, filho, para que a vida seja mais que a cegueira e cobardia?

Eugénio de Andrade


Sou prisioneira de um passado que me persegue. Culpo-te a ti, sem dó nem piedade, por me teres prendido à janela. Por insistires em abrir-me o peito a cada mentira que contas. Um peito lentamente rasgado pela vida. Brindo mais uma vez ao cinismo: respiro apenas a lonjura - porque nunca me amaste e já nem a tua voz me comove. E o mais triste é ter o teu sangue - cegueira e cobardia - a correr-me nas veias. Não há cura para os abraços fingidos. E eu continuo a procurar nos outros aquilo que nunca me deste, o amor que tanto prometeste mas que deixaste fugir como a uma baforada de fumo.

Ordinal






















au revoir simone | stay golden

I

Espera um segundo,
Se eu te disser
‘Espera um segundo’
Confiarão os teus dias naquilo que os olhos ouvem?
Espera um segundo.
Abre mão
das palmas dos olhos,
das palmas das mãos,
das palmas dos braços,
da palma do regaço,
das palmas dos pés
Nelas: todos os corações.

II

Espera um segundo,
Divide cada momento em seis.
Contempla o arco
o sol
Deixa cada momento morrer
na palma da tua mão.
As mulheres amam sempre.
Espera um segundo,
Estende a língua ao silêncio.
Sabe-o. Sobe
sobre o degrau último do tempo
Ouve-a, que paira.
As mulheres têm vários corações.
Espera um segundo,
Extrai os dias
da rocha
o tempo
Coloca-os sobre uma placa de madeira.
Destila o sal
do conta-momentos
momento-a-momento
a-tempadamente
fende:
Sagra dos dias a forma intacta.
As mulheres amam sempre.
Guarda o tempo,
momento-a-momento
recolhe-os para o verão.

III

Espera um segundo,
Des-conhece.
Des-arruma, des-compara, des-ordena
o cheio
chão das coisas.
Des-sê.
As mulheres têm vários corações.
Um no círculo dos olhos
chama-se  relâmpago,
espelho.
Um no círculo das mãos
chama-se  pele,
esquisso.
Um no círculo dos braços
chama-se  tear,
edifício.
Um no círculo do regaço
chama-se  pomo,
pérola.
Um  no círculo dos pés
chama-se  casa,
eternidade.
Espera um segundo,
Como se tivesses seis anos

e um sorriso de gengivas
o aguardasse debaixo da almofada pela manhã.

Joana Jacinto

terça-feira, 17 de julho de 2012

Antes foi uma luz na minha linguagem nascida a poucos passos do amor *
















blaudzun | we both know

Não sei sobre pássaros,
não conheço a história do fogo.
Mas creio que minha solidão deveria ter asas.

Alejandra Pizarnik


(e foi assim que começou, no dia em que nasceste para mim.)

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Não sei como dizer-te que a pureza, dentro de mim, te procura























cowboy junkies | angel mine

Não sei como dizer-te que a minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e casta.
Não sei o que dizer, especialmente quando os teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e tu estremeces como um pensamento chegado. Quando
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima,
– eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
o coração é uma semente inventada
em seu ascético escuro e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a minha casa ardesse pousada na noite.
– E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes caem no meio do tempo,
– não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço –
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra vai cair da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me falta
um girassol, uma pedra, uma ave – qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,

que te procuram.

Herberto Helder

A noite é um poema que conheço de cor
















azure ray | sleep

Dorme, meu amor, que o mundo já viu morrer mais
este dia e eu estou aqui, de guarda aos pesadelos.
Fecha os olhos agora e sossega o pior já passou
há muito tempo; e o vento amaciou; e a minha mão
desvia os passos do medo. Dorme, meu amor -

a morte está deitada sob o lençol da terra onde nasceste
e pode levantar-se como um pássaro assim que
adormeceres. Mas nada temas: as suas asas de sombra
não hão-de derrubar-me eu já morri muitas vezes
e é ainda da vida que tenho mais medo. Fecha os olhos

agora e sossega a porta está trancada; e os fantasmas
da casa que o jardim devorou andam perdidos
nas brumas que lancei ao caminho. Por isso, dorme,

meu amor, larga a tristeza à porta do meu corpo e
nada temas: eu já ouvi o silêncio, já vi a escuridão, já
olhei a morte debruçada nos espelhos e estou aqui,
de guarda aos pesadelos a noite é um poema
que conheço de cor e vou cantar-to até adormeceres.

Maria do Rosário Pedreira

terça-feira, 10 de julho de 2012

Palavras soterradas na prisão da minha vida

elliott smith | bottle up and explode

A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
e as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só

Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?

Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo uma noite só comprida
num quarto só

António Ramos Rosa

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Estende a mão ao milagre






















peter murphy | i'll fall with your knife

O teu lugar é
onde olhos te olham.
Tu nasces
onde os olhos se encontram.

Suspensa por um chamar,
sempre a mesma voz,
parece haver só uma
com que todos chamam.

Caías,
mas não cais.
Olhos te prendem.

Tu existes
porque olhos te querem,
olham-te e dizem
que tu existes.

Hilde Domin

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Somehow expect you'll find me there, that by some miracle you'd be aware

pj harvey | silence

I have packed myself into silence so deeply and for so long that I can never unpack myself using words. When I speak, I only pack myself a little differently.


Herta Muller 

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Now there's a blue, blue, strange colour blue





















madrugada | strange color blue

Naquele tempo chamávamos maravilhosos
a certos momentos, não sei se hoje ainda
se diz assim, maravilhosos, mas era uma coisa
que metia um dia límpido, uma boa refeição
(com um bom vinho), amor de trepar
pelas paredes. Num desses momentos
maravilhosos, em que não sabíamos
onde íamos parar, quis negar a paixão
por ti, mas já não fui a tempo. Digamos
que fiquei agarrado, e agora, que tomo
uma espécie de metadona para o amor,
sinto saudades enormes da droga verdadeira.

Helder Moura Pereira

quarta-feira, 4 de julho de 2012

These scars of mine make wounded rhymes tonight

lykke li | sadness is a blessing

Comprei-lhe A Balada do Café Triste
depois de quase ter passado por ladrão
de livros, mexendo-lhes sem olhar
para eles enquanto rondava de todos
os lados aqueles olhos que se viam
de qualquer ponto da feira, mesmo
se houvesse obstáculos o verde
atravessava-os, o verde tornava tudo
verde entre mim e ela, e no meio
dessa cor unânime a rapariga
era ainda mais. Pouco importa,
leitor, se houve depois alguma história,
entre homem e mulher não se passa
muito mais: uns olhos que de repente
são necessários e pelos quais passamos
por ladrões de livros ou pior.
Nunca li A Balada do Café Triste.

Pedro Mexia
(daqui)

terça-feira, 3 de julho de 2012

Anjo de papel ou de água?

nick cave & the bad seeds | people ain't no good


Se Tu não voltares estes poemas hão-de tor-
nar-se trágicos. O texto vai revelar a
cicatriz de seda e os laivos claros do meu
choro. A contra-coração vou reescrevê-los.
Hei-de encontrar aqui uma placa lisa
para arrastar as letras até à regueira
turva. A imagem da água que era a de uma
simbiose entre Ti e a minha ideia de Ti
vai enegrecer. A podridão há-de
macerar o poema. Vou ser eu o autor
a quem a agonia devora juntamente
com um livro inerte. Quando Tu não
voltares eu saberei ler como um iluminado.
Os significados metafóricos levá-los-ei
até à ironia. A realidade levantá-la-ei
dessa valeta. Vai fascinar-me o torvelinho mor-
tal em que mesmo os poemas sem dor
sempre se desfazem. Quanto mais estes
em que se ostenta o Amor em páginas ás-
peras até eu perder a noção de estar presente.

Fiama Hasse Pais Brandão