terça-feira, 26 de janeiro de 2016

O sinal definitivo de que nos voltámos a enganar












ornatos violeta | deixa morrer

Não sabemos nada.
Nunca saberemos se os enganados
são os sentidos ou os sentimentos,
se viaja o comboio ou a nossa vontade
se as cidades mudam de lugar
ou se todas as casas são a mesma.
Nunca saberemos se quem nos espera
é quem nos deve esperar, nem sequer
quem temos de aguardar no meio de um cais frio.
Não sabemos nada.
Avançamos às cegas e duvidamos
se isto que se parece com a alegria
é só o sinal definitivo
de que nos voltámos a enganar.

Amalia Bautista

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Ficaram estreitas passagens entre frio e calor e entre certo e errado























arcade fire | my body is a cage

O corpo tem abóbadas onde soam os
sentidos, se tocados de leve, ecoando longamente
como memórias de outra vida
em frios desertos ou praias de lama.
O passado não está ainda preparado para nós,
para não falar do futuro; é certo que
temos um corpo, mas é um corpo inerte,
feito mais de coisas como esperança e desejo
do que de carne, sangue, cabelo,
e desabitado de línguas e de astros
e de noites escuras, e nenhuma beleza o tortura
mas a morte, a dor e a certeza de que
não está aqui nem tem para onde ir.

Lemos de mais e escrevemos de mais,
e afastámo-nos de mais – pois o preço era
muito alto para o que podíamos pagar –
da alegria das línguas. Ficaram estreitas
passagens entre frio e calor
e entre certo e errado
por onde entramos como num quarto de pensão
com um nome suposto; e quanto a
tragédia, e mesmo quanto a drama moral,
foi o melhor que conseguimos.

A beleza do corpo amado é
(agora sabemo-lo) lixo orgânico.
O mármore que pudemos foi o das casas de banho
e o dos balcões dos bancos,
e grandes gestos nem nos romances,
quanto mais nos versos! E do amor
melhor é nem falar porque as línguas
tornaram-se objecto de estudo médico
e nenhuma palavra é já suficientemente secreta.

Corpo, corpo, porque me abandonaste?
“Tomai, comei”, pois sim, mas quando
a química não chega para adormecermos,
a que divindades havemos de nos acolher
senão àquelas últimas do passado soterradas
sob tanta chuva ácida e tanta investigação histórica,
tanta psicologia e tanta antropologia?
A memória, sem o corpo, não é ascensão nem recomeço,
e, sem ela, o corpo é incapaz de nudez
e de amor. Agora podemos calar-nos
sem temer o silêncio nem a culpa
porque já não há tais palavras.

Manuel António Pina

Night and day i dream of making love to you. Now baby. Love making on screen. Impossible dream.























pj harvey feat. thom yorke | this mess we're in

As mãos.
Essa região desconhecida que nos aproxima e afasta ao mesmo tempo.

Perco-me na penumbra do que queria ter gritado e não pude.

O desejo resgata-nos do abismo,
mas também se ergue o que não admite consolo.

Palavras como pássaros na solidão do ar.

Lucía Estrada 

And keep the things you forgot
















elliott smith | between the bars

Risquei o último fósforo
e estou agora vazia,
não esperando sequer
o deserto. Posso de novo
sublinhar os livros
sem pensar noutros olhos,
numa vontade que não coincida;
como quem se despe
de portas abertas, luzes acesas,
buracos na roupa,
indiferente ao desejo
de vizinhos e espelhos.

Sou finalmente o único fantasma
da minha vida inteira.

Inês Dias

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

E depois?























the czars | angel eyes

Já nada temos a fazer sobre a Terra esperemos de olhos fechados a
passagem do vento
dizia eu    dizia eu
que é sobre a missa branca do teu peito que se erguem os palácios
rasos de água
no escuro    no escuro
alguém nos levará tocando-nos com um dedo nós trémulos,
deitados, sem dizer palavra, morreremos de ter-nos
conhecido tanto
e depois?   e depois?
depois o halo de uma fita azul o martelo esquecido sobre a pedra
de um sonho
mas os salões?   e a casa?
e o cão que nos seguia?

o teu rosto meu rosto
este homem alto


                                             o Sol

Mário Cesariny

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Go and pack a little suitcase with the pieces of our hearts

stuart a. staples & lhasa de sela | that leaving feeling

há um comboio
iluminado
no meu cérebro cheio
de túneis e noites.

Daniel Faria