terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

* In your dreams you shall ride whilst your mammy's watching over *











current 93 | all the pretty little horsies

são tão altas as paredes da noite
tão habitadas pela estranheza de existirmos. tanta é a insónia
que me visita para me deixar este travo de amargor
esta suspeição de que para lá de todo o mundo
existe qualquer outra coisa
de que nem sei a cor
nem o sabor

(tento recuperar o meu corpo
a morna quietude do meu corpo
e acontece-me despertar
sempre e cada vez mais)

- há qualquer coisa de antigo neste estar aqui
a esta hora despropositada e perdida
a tentar alinhavar uma carta -

(o tempo que nos engole os dias e
o tempo que nos expulsa em solidão à luz do sol)

dias a dias a roda incessante das horas nos rouba
o sonho feliz. provavelmente
é um certo vazio que se instala entre os ossos e
a cor do olhar. perco-me tantas vezes quando
vigio o outro lado do mundo
perante o imenso das águas
de que quase sinto o rugido
aqui
sentada no silêncio e digo
- então a vida é isto?

a gente entrega assim
tantas vezes

demasiadas vezes

um corpo
a outro
corpo

na esperança que ele o devolva roído de
ossos e tristezas e no
final
os dias são a hora exacta dos olhos no momento em que uma dor
qualquer
maior que a hora toda
se interpõe entre
mim
e
ti

(carregamos todos demasiados segredos
dores inconfessáveis e antigas
carreiros sinuosos por onde as lágrimas calam
e secam)

sei: há esse quotidiano de mãos
que se afundam na distância
e beijos por dar
sempre por dar
há essa fronteira de vidro
inquebrantável fronteira de vidro e casas de onde semeamos estas palavras
como segredos
(quanto
que de nós resta
depois da morte sussurrada
depois da morte
da doce morte
que assoma em cor
ao teu rosto
em água à tua boca
e se faz e desfaz
entre pernas e lençóis e vida
- uma pequena morte que reclamamos como nossa
um pedaço de ressurreição
possivelmente uma terra de renovadas boas-novas

- sei)

a verdade é que uma andorinha nunca basta
para toda a primavera
e como poderíamos então
crescermo-nos como outras terras
um no outro?

(temo ter-te já dito demasiado)

o que na verdade acontece é palpável apenas
no pensamento

sobra sempre um olhar
que vigia o frio rugido em que os dias
como o mar
se estendem para lá
sempre para lá
sempre
para lá

suspeito que mesmo a flor
tremenda
do meu ventre
rebentando agora cálida à tua beira
não é essa carne viva e pulsante como astro
mas uma qualquer outra história
de invisíveis enredos
mãos bocas fios e abismos com peixes dentro
onde marés e olhos
desvendam no mar os rios e
os ardores do sol
sabem
inevitavelmente
ao luar que aí morre

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

A faca não corta o fogo








over the rhine | the world can wait

O que está escrito no mundo está escrito de lado
a lado do corpo - e tu, pura alucinação da memória,
entra no meu coração como um braço vivo:
o dia traz as paisagens de dentro delas, a noite é um grande
buraco selvagem -
e a voz agarra em todo o espaço, desde o epicentro às constelações
dos membros abertos: e irrompe o sangue
das imagens ferozes:
as rótulas unidas aos dentes e,
como um sexo trilhado:
a boca expele por entre os joelhos o seu grito com a fundura
de uma paisagem - uma
paisagem arrancada ao meio da noite, com as golfadas
de luz
que se despenharam: porque não há lembrança
dos jardins refrigerados com seus pequenos planetas
fotostáticos
levitando - a loucura está tão próxima que o meu braço
se entranha na água, e este atelier onde escrevo
sobe
dos precipícios curvos, forte desde o fundo:
aquilo que se escreve é o próprio corpo pregado como uma estrela
à purpura das madeiras, aos lençóis
ofuscantes cheios de sangue, de água
magnetizada - e esta sala brilhando apoia-se às espáduas,
e em baixo a queimadura
dos intestinos arde do alimento: os cabelos luzem, o rosto
plantado
em sua estaca de sangue como uma grande veia animal -
eu tenho sangue até às órbitas: a estrela fechada eleva-se
no remoinho da garganta - e levanto a mão e explode
cinematograficamente
a imagem da própria mão
afogada
- porque eu morro da minha vida grave: a longa pálpebra
do corpo cerra-se
sobre a fenda negra aberta à paisagem que corre
como uma chama
por toda a casa - ceifem-me os cabelos à luz
panorâmica: e nas raízes sangrentas
a cabeça queima-se como a lua queima as roupas
levantadas - o meio do vento que cresce nesses cabelos cresce
dentro de mim: meu coração aumenta como uma pedra
aumenta
exposta às mãos como outra mão
de carne larga - esse
osso vedado alumiando o fundo da cabeleira que cortam
como se corta a noite
com uma foice, e os ossos se cortam a plena voz,
na terra, num incêndio completo, enquanto
ceifam: porque há uma cabeça no centro
do choque
do corpo: uma cabeça movida pelo refluxo escuro dos dias
sem fracturas: a cabeça
que vê e cheira e que se abre e fecha
e ouve e refulge e morde
e come depressa e respira para dentro e para fora -
e a voz ascende de todas as raízes entrelaçadas
- a largura, o sangue, o movimento: a fruta em claridade
entre as unhas,
labaredas, um puro génio mundial - tudo como uma forma límpida,
sutura
do coração, uma leveza tremenda
no poder: quando o dia é muito perto, uma estrela comprida
- as mães brilhavam: o que eu escrevo, elas o escreviam
na queimadura da paisagem: uma visão
cerrada pela força: e um cometa desentranha-se
da branca carnagem das memórias, fervendo
entre axilas e falangetas como
um braço, ou uma dança luzente na sua teia até às pálpebras -
o que se lembra e pulsa: fibras
vivas
de uma vara embrenhada no meio da água,
e à volta os planetas oscilam como folhas cantando
desde o abismo -
os dedos das mães nas linhas sangrentas que cosem
profundamente
o espelho e a imagem, como pelas artérias se cose
o coração
aos pedaços de carne, entre orifícios
negros, ressacas
fulgurantes, o corpo aberto com o centro estancado na terra.

Herberto Hélder