quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Com um coração às voltas












pj harvey | send his love to me

O nosso telefonema derramou-se na escuridão
e ficou a reluzir entre o campo e a cidade
como a confusão de uma luta com facas.
Posteriormente, inquieto e extenuado na cama de hotel toda a noite,
sonhei que era a agulha de uma bússola
a tentar orientar-me floresta adentro com um coração às voltas.

Robin Robertson

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Waiting for the miracle













leonard cohen  | waiting for the miracle

Quero de ti o que for simples
um aceno um postal
o teu nome numa concha

Ter apenas isto:
um banco de jardim
onde te esperar
e esperar.

Vasco Gato

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

34 (Cala-te um bocado junto ao mar)








the waterboys | this is the sea

Tem paciência. Estás há 34 anos a dizer
palavras, é natural que te canses
do ouro carregado nos dentes ciganos,
do poema. Cala-te um bocado junto ao mar
já tão cansado de lirismo e de piratas amadores,
exausto de motivos para a fina poluição do verso.
Aluga um moinho, compra umas cerejas frescas,
um salpicão, a vinha do tempo dos avós.
Leva contigo um quilo de castanhas, o disco da primeira separação, o teu par de patins amarelos.
Vê se dormes. É preciso dormir — mais do que calar.
Endireita as costas e a mala breve,
rega suficientemente as plantas que vais deixar morrer,
põe-te na estrada, cala-te um bocado.
E faz-nos, a todos, um favor:
Não escrevas uma linha enquanto estiveres lá.

Filipa Leal

(34 anos e uns meses, vá.)

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Cena campestre









unkle | burn my shadow

A casa esperou por nós,
pensamos. O duplo renque de árvores
acena-nos que nos cheguemos. Num sussurro,
o rio vai escorregando cheio
entre as margens.

À hora exacta, o sol vai esconder-se
por trás dos campos. A escuridão
envolve a casa que nos protege.
Acendemos o fogo, bebemos
entre as paredes.

Vendi-me inteira à
segurança e debruço-me da janela.
Dormem cavalos e galos, a água
pisca o olho à lua, e eu a pagar,
sempre a pagar.

Anna Enquist

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Coisas de luz antigas












richard hawley | valentine

Aquele namorado que tinha
um nome bom: há quanto tempo foi?
A vida resvalante como gelo
e aquele namorado de nome bom
e férias, ficou perdido em luz,
mais de vinte anos.

Deu-me uma vez a mão
um beijo resvalante à hora de deitar
e na pensão. Mas tinha um nome bom.
falava de cinema e calçava de azul
e um bigode curtinho,
que escorregou aceso como gelo
no centro da pensão.

Rasguei as cartas dele
há quinze anos, em dia de gavetas
e de luz, e nem fotografia me ficou
de desarrumação. Mas tinha um nome bom,
falava de cinema e calçava de azul
e resvalou-me quente como gelo
à hora de deitar:

um namorado sem falar
de amor

(que a timidez maior
e o quarto dos meus pais
nessa pensão
no mesmo corredor)

Ana Luísa Amaral

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

O amor cru









emily jane white | pallid eyes

Pouco a pouco fomos descobrindo
como se põe sal por cima do silêncio
e água por trás das palavras.

E preferimos calar para dizer a ausência.
E preferimos dizer para temperar a calma.

Mas o amor.
O amor cru.

E já não soubemos que fazer
com o deserto,
com os sinais,
com a sede.

Valeria Pariso

(já não dói.)