quarta-feira, 28 de junho de 2017

E no meio da confusão







natalie merchant | to love is to bury

e no meio da confusão alguém partiu sem se despedir. foi triste. se houvesse uma despedida talvez fosse mais triste, talvez tenha sido melhor assim, uma separação como às vezes acontece num baile de carnaval — uma pessoa perde-se da outra, procura-a por um instante e depois adere a qualquer cordão. é melhor para os amantes pensar que a última vez que se encontraram se amaram muito — depois apenas aconteceu que não se encontraram mais. eles não se despediram, a vida é que os despediu, cada um para seu lado — sem glória nem humilhação.

creio que será permitido guardar uma leve tristeza, e também uma lembrança boa; que não será proibido confessar que às vezes se tem saudades; nem será odioso dizer que a separação ao mesmo tempo nos traz um inexplicável sentimento de alívio, e de sossego; e um indefinível remorso; e um recôndito despeito.

Rubem Braga

(daqui)

segunda-feira, 26 de junho de 2017

O diagnóstico e a terapêutica











chico buarque | o meu amor

O amor é uma das doenças mais bravas e contagiosas. Qualquer um reconhece os doentes dessa doença. Fundas olheiras delatam que jamais dormimos, despertos noite após noite pelos abraços e padecemos febres devastadoras e sentimos uma irresistível necessidade de dizer estupidezes. O amor pode ser provocado, deixando cair um punhadinho de pó de me ame, como por descuido, no café ou na sopa ou na bebida. Pode ser provocado, mas não pode impedir. Não o impede nem água benta, nem o pó de hóstia tampouco o dente de alho, que nesse caso não serve pra nada. O amor é surdo frente ao verbo divino e ao esconjuro das bruxas. Não há decreto de governo que possa com ele, nem poção capaz de evitá-lo, embora as vivanduras, apregoem, nos mercados, infalíveis, beberagens com garantia e tudo.

Eduardo Galeano 

quinta-feira, 22 de junho de 2017

Recomeço










jeff buckley | yard of blonde girls

Um Diário destes não magoa, pensa a rapariga, folheando
O seu caderno: Apaga os passos que deu até aqui.
E imagina que a espera um espaço imenso. Páginas adiante,
A letra torna-se irregular, a simetria esvai-se confusa.
Não foi, certamente, o espaço que dela se abeirou. Não.
Também não foi o amor, como se poderia pensar.
Foi o Género. Pegou no Diário e fê-lo romance. É assim.
Só estranho o novo corpo que lhe foi dado.

Maria Gabriela Llansol

quarta-feira, 21 de junho de 2017

Lenha da melancolia









julien baker | sprained ankle

wish i could write songs about anything other than death
but i can't go to bed without drawing the red, shaving off breaths;
each one so heavy, each one so cumbersome
each one a lead weight hanging between my lungs
spilling my guts

Sem saber muito bem como, voltou a escrever no caderno das recordações. Há medo nessas palavras e nos seus pés nus, fantasmas que se libertam de músicas antigas e fendas que se abrem no chão do quarto com a primeira luz da manhã. Houve um tempo em que o amor era uma cicatriz que sangrava no seu peito. Depois, os pássaros pousaram no parapeito da janela para lhe sugerir um outro amor - novo, diferente, sem as palavras que desesperadamente procurara ouvir noutra boca. Quis abrir as portadas da janela e chamar as andorinhas da primavera. Mas esqueceu-se que as letras são a sua casa e que é só com elas - quando as escreve - que consegue voar e tocar as nuvens. As palavras são para ela a lenha da melancolia. Sempre achou que era à terra que pertencia e que era ao pé das árvores que se sentia feliz. Pelo menos era mais delas, em todos os outros sítios estava desenquadrada, fora da fotografia, sentia-se apagada, invisível. Uma espécie de sentença à solidão interior, a pior de todas, que não deixava nada nem ninguém aproximar-se dela. É assim que as poucas certezas a trazem pendurada no fio da realidade. Caminha pelos dias como quem nada espera mas, sentada à mesa, continua a escrever um mundo para lá do horizonte. A noite devolve-lhe a monotonia, o não saber que fazer ao tempo que sobra no relógio, os medos e uma casa que guarda demasiados rancores. Foge. Conhece as palavras felizes e escreve-as. Pensa como gostaria de lhas dizer ao ouvido. Mas é no silêncio que mora. É para lá que volta sempre.

segunda-feira, 19 de junho de 2017

Desde los afectos









lhasa de sela | el árbol del olvido

Cómo hacerte saber que siempre hay tiempo?
Que uno tiene que buscarlo y dárselo...
Que nadie establece normas, salvo la vida...
Que la vida sin ciertas normas pierde formas...
Que la forma no se pierde con abrirnos...
Que abrirnos no es amar indiscriminadamente...
Que no está prohibido amar...
Que también se puede odiar...
Que la agresión porque sí, hiere mucho...
Que las heridas se cierran...
Que las puertas no deben cerrarse...
Que la mayor puerta es el afecto...
Que los afectos, nos definen...
Que definirse no es remar contra la corriente...
Que no cuanto más fuerte se hace el trazo, más se dibuja...
Que negar palabras, es abrir distancias...
Que encontrarse es muy hermoso...
Que el sexo forma parte de lo hermoso de la vida...
Que la vida parte del sexo...
Que el por qué de los niños, tiene su por qué...
Que querer saber de alguien, no es sólo curiosidad...
Que saber todo de todos, es curiosidad malsana...
Que nunca está de más agradecer...
Que autodeterminación no es hacer las cosas solo...
Que nadie quiere estar solo...
Que para no estar solo hay que dar...
Que para dar, debemos recibir antes...
Que para que nos den también hay que saber pedir...
Que saber pedir no es regalarse...
Que regalarse en definitiva no es quererse...
Que para que nos quieran debemos demostrar qué somos...
Que para que alguien sea, hay que ayudarlo...
Que ayudar es poder alentar y apoyar...
Que adular no es apoyar...
Que adular es tan pernicioso como dar vuelta la cara...
Que las cosas cara a cara son honestas...
Que nadie es honesto porque no robe5...
Que cuando no hay placer en las cosas no se está viviendo...
Que para sentir la vida hay que olvidarse que existe la muerte...
Que se puede estar muerto en vida..
Que se siente con el cuerpo y la mente...
Que con los oídos se escucha...
Que cuesta ser sensible y no herirse...
Que herirse no es desangrarse...
Que para no ser heridos levantamos muros...
Que sería mejor construir puentes...
Que sobre ellos se van a la otra orilla y nadie vuelve...
Que volver no implica retroceder...
Que retroceder también puede ser avanzar...
Que no por mucho avanzar se amanece más cerca del sol...
Cómo hacerte saber que nadie establece normas, salvo la vida?

Mario Benedetti

terça-feira, 13 de junho de 2017

Alguma coisa se afasta de nós irremediavelmente










death in vegas | dirge

por vezes não sabemos o que fazer
— hoje apenas resta esta frase
a sinalizar em ferida uma falha
— sem esperança dela irradiar
cornucópia luminosa braseiro
ficamos imobilizados no mundo
sem contorno ou profundidade
sem mão ou palavra para erguer
alguma coisa se afasta de nós
irremediavelmente.

Carlos Alberto Machado

sexta-feira, 9 de junho de 2017

A careful heart is better than none









the national | a reasonable man (i don't mind)

Como um diálogo de amantes apaixonados
O coração só tem uma boca para falar

Paul Éluard

segunda-feira, 5 de junho de 2017

One more time with feeling








nick cave | girl in amber 

Most of us don't want to change. What we do want is sort of modifications on the original model. We keep on being ourselves, but hopefully better versions of ourselves. But what happens when an event occurs that is so catastrophic that we just change from one day to the next? We change from the known person to an unknown person, so that when you look at yourself in the mirror, do you recognize the person that you were, but the person inside the skin is a different person? So that when you go outside, the world its the same, but now you are a different person, and you have to re-negotiate your position in the world. For instance, when you go into a shop to get cigarettes, because this new version of yourself smokes, and the shop owner says, 'How are you?' And you don't know how to answer. Or when you meet a friend on the street who says some kindness, and suddenly you are crying their arms for ages, and then you realize that person is not a friend at all, but someone else that you don't actually know very well. Or you go into a bakery to buy a loaf of bread, say, and you're standing in the queue, and someone grabs you by the arm says something with their kind eyes, but you can't work out what they've said because the new you can't hear very well. And so you say, 'What?' but too loudly, and angrily and he says, 'We are all with you, man,' and you look around and all the bakery is looking at you with kind eyes. And you think that people are really nice. But when did you become an object of pity?

Nick Cave

sexta-feira, 2 de junho de 2017

Raízes na noite enlaçadas








lhasa de sela | el desierto

Dois corpos frente a frente
são às vezes duas ondas
e a noite um oceano

Dois corpos frente a frente
são às vezes duas pedras
e a noite um deserto

Dois corpos frente a frente
são às vezes raízes
na noite enlaçadas

Dois corpos frente a frente
são às vezes navalhas
e a noite um relâmpago

Dois corpos frente a frente
são dois astros que caem
num céu vazio

Octavio Paz

quinta-feira, 1 de junho de 2017

You will miss me when i burn *










bonnie prince billy | you will miss me when i burn

É com mãos, olfacto, dentes, boca
que procuro o cheiro dos animais à mesa,
da roupa amarrotada duma antiga
posse viva e de criança,
da comida espessa na sua longa espera,
a mais reconfortante,
o rumor entontecido dos pássaros,
os amigos seguros, a ternura dos tios, a pancada cega,
sempre repetida,
e pelo amor da mãe desmoronada.

Armando Silva Carvalho