quarta-feira, 21 de maio de 2014

And i will love you all the time















spiritualized | ladies and gentlemen we are floating in space

Comecei a escrever para ti ainda antes de te sentir, quando o sonho mal parecia real e eu apenas ansiava que acontecesses. As palavras sempre me foram a melhor maneira de chamar a felicidade. Eu queria falar contigo mesmo antes de existires, inventar nomes na minha cabeça que fizessem justiça à beleza dos teus olhos que – agora – espero sofregamente por ver. Eu queria acima de tudo merecer-te, preparar-me para te receber em mim. Percebo, enfim, que nada disto nos ensina a maior bênção de todas.
Ontem espreitei-te mais uma vez naquele pequeno ecrã: a maneira como escondias o rosto – eu ali a pensar se serás tão tímida como eu, se gostarás também de uma certa dose de melancolia quando cresceres ou se o teu sorriso irá iluminar todas as salas do mundo sem o menor esforço. Dei-me conta que já não suporto filmes tristes, nada triste, com medo que me sintas a chorar por dentro, apercebo-me aos poucos que o coração de pedra se vai desfazendo aos bocadinhos e que todas as defesas que estabeleci até hoje se desmoronam a olhos vistos. Sorrio por tudo e por nada – ainda mais – e morro de medo e preocupação que alguma coisa corra menos bem. Porque já não sou sozinha, a cada dia que corre tu vais crescendo mais e mais. As mãos do teu pai na minha barriga são um arrepio dos bons, os beijos e abraços da tua irmã fazem-me sentir a mulher mais especial à face da terra e penso como vivi este tempo todo sem ti, como pude pensar que ser mãe não era sorte que me estivesse destinada. Penso também como serei capaz de te educar no meio de tantas barreiras impostas por quem, com certeza, não sabe o que é viver na instabilidade deste país, e como mesmo assim poderei dar-te o melhor de mim, dos outros. Não poderei em tempo algum ser egoísta. Não que o seja agora, acredito que não. Mas onde irei esconder a angústia de sentir se estou a fazer o mais correcto ou apenas a seguir o caminho mais fácil, que todos seguem? Como te dar a infância que nunca tive? Aquela lembrança feliz de tudo ser possível, que nunca soube o que é? Sei que todas estas dúvidas tomam conta de mim, como nunca. 
Mas só uma coisa é certa: nos nossos corações não podias ter sido mais desejada, Maria Inês.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Dá-me aquele ramo de estrelas maduras





















azure ray | safe and sound

Uma criança disse: «Quando eu crescer, vou cortar as flores grandes para não haver vento.»
Largas crianças amarelas nos parques podres. Amarelas como os inquilinos das luzes. Como os lugares culpados da maior existência de Deus.
As crianças tremem com a mão dentro do movimento.

Uma criança disse: «Um anjo é uma gaivota.»
«Um anjo é um homem como os outros, o que é, tem asas.»
E outras: «Um anjo é um pássaro cantador.»
«Um anjo é uma andorinha. Tem uma coroa.»
«Um anjo é um homem que tem o sol pendurado atrás da cabeça.»
E uma outra sonhou que tinha engolido o sol.
Crianças trespassadas pela sua própria exactidão.
As orelhas das crianças servem para as pedras serem pedras que ouvem. Pedras plurais.
Os livros com crianças delirantes, as paisagens na voz.

Crianças são as letras antigas com que se escreve a única palavra insuportavelmente viva.

Uma criança disse: «Olha a minha sombra natural exactamente branca.»
A mesma: «Era um tempo decisivo, assim como uma casa cheia de lobos.» E contou a seguir uma história em que tudo tinha a cor verde, desde as pessoas aos animais e objectos. O próprio ar era verde.
As crianças são uma verdade impraticável.
As crianças começam a construir, tijolo a tijolo, suas mães monumentais. Depois partem para os pensamentos como para uma ascendente morte aos degraus.

Uma criança disse: «Dá-me aquele ramo de estrelas maduras.»

Herberto Helder