sábado, 16 de dezembro de 2017

Hoje










rodrigo leão & camané | voltar

Una mujer y un hombre llevados por la vida,
una mujer y un hombre cara a cara
habitan en la noche, desbordan por sus manos,
se oyen subir libres en la sombra,
sus cabezas descansan en una bella infancia
que ellos crearon juntos, plena de sol, de luz,
una mujer y un hombre atados por sus labios
llenan la noche lenta con toda su memoria,
una mujer y un hombre más bellos en el otro
ocupan su lugar en la tierra.

Juan Gelman

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Tu és ainda o maior dos mares










the czars | angel eyes

À tua palavra me acolho lá onde
o dia começa e o corpo nos renasce
Regresso recém-nascido ao teu regaço
minha mais funda infância meu paul
Voltam de novo as folhas para as árvores
e nunca as lágrimas deixaram os olhos
Nem houve céus forrados sobre as horas
nem míseras ideias de cotim
despovoaram alegres tardes de pássaros
O sol continua a ser o único
acontecimento importante da rua
Eu passo mas não peço às árvores
coração para além dos frutos
Tu és ainda o maior dos mares
e embrulho-me na voz com que desdobras
o inumerável número dos dias

Ruy Belo

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Escutava o emudecimento das vozes dos pássaros







yann tiersen | j'y suis jamais allé

Havia meses que não escrevia
nem um único poema.
Vivia com humildade, lendo os jornais,
pensando no enigma do poder
e nas causas da obediência.
Olhava para os pores-do-sol
(escarlates, cheios de inquietação),
escutava o emudecimento das vozes dos pássaros
e o silêncio da noite.
Via os girassóis a pendurarem
as cabeças ao lusco-fusco, como se um carrasco distraído
passeasse por entre os jardins.
No parapeito recolhia-se
a doce poeira de Setembro enquanto os lagartos
se escondiam nas curvaturas dos muros.
Dava longos passeios,
sedento duma coisa só:
dum relâmpago,
duma mudança,
de ti.

Adam Zagajewski

(daqui)

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Uma subtil forma de cuidado










jeff buckley | morning theft

Nem sempre se deve desconfiar das pessoas
graves, aquelas que caminham com o pescoço inclinado para baixo,
os olhos delas a tocar pela primeira vez o caminho que os pés confirmarão
depois.
Às vezes elas vêem o céu do outro lado do caminho que é o que lhes fica por baixo
dos pés e por isso do outro lado do mundo.
O outro lado do mundo das pessoas graves parece portanto um sítio longe dos pés
e mais longe ainda das mãos
que também caem nos dias em que o ar pode ser mais pesado e os ossos
se enchem de uma substância morna que não se sabe bem o que é.
Na gravidade dos pés e da cabeça, e também dos olhos, com que nos são alheias
quando as olhamos de frente rumo ao lado útil do caminho que escolhemos, essas
pessoas arrastam uma nuvem prateada que a cada passo larga uma imagem daquilo
que foram ou das pessoas que amaram.
Essas imagens podem desaparecer para sempre se forem pisadas quando caem no
chão. A gravidade dos pés e da cabeça, e também dos olhos, dessas
pessoas, é, por isso, uma subtil forma de cuidado.

Rui Costa 

sábado, 9 de dezembro de 2017

E outras vezes em guerra tão em guerra







jorge palma | disse fêmea

Não invoques a de ontem porque ela já foi embora
Desde que tu partiste morreu já muitas vezes
E embora tenha renascido já nunca foi a mesma
Mais frágil mais ingénua mais tímida umas vezes
outras vezes mais sábia mais triste mais murcha
Mas sempre distinta e outra vez sempre
Às vezes conformada mais cheia do meu sangue
como se tudo fosse novo tudo recém comprado
água sol e ar e sombra
Tão resignada que até sorrio ao espelho que não
Tenho frente a mim
E outras vezes em guerra tão em guerra
que o meu tacto é punhal que me agride as veias
e as flores me ferem e o céu me criva
e até o meu próprio corpo me danifica
- Morro e volto a nascer a cada manhã
a angustiada de ontem hoje não a busques
A eufórica de hoje
talvez esta mesma noite se suicide
abraçada ao travesseiro

Josefina Plá