terça-feira, 31 de maio de 2016

Espectáculo














benjamin clementine | then i heard a bachelor's cry

Dois ou três nomes para o silêncio. Disse: dois ou três nomes para o silêncio. Riem-se e continuam a conversa. Dor, dor, dor. Disse: dor, dor, dor. Riem-se de novo e continuam a conversa. Espeta uma faca no peito, abre-o de lado a lado e mostra a carne que sangra. Riem-se ainda (a cena do faquir, comentam, com autoridade de conhecedor). Arranca o coração do peito, estende-o nas mãos em sangue. Reclamam algo mais ousado (é muito fácil o sangue de ninguém). Dobra-se sobre si mesmo para morrer, nas mãos apertando o coração inútil (não havia espectáculo afinal). Voltam a rir, enquanto chamam o empregado para limpar o chão (desfecho tão vulgar para o que se anunciava, concluem). De seguida retomam a conversa.

Jorge Roque

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Diz-me tu se no final terei que me arrepender

jeff buckley | i know it's over

Às vezes não queria
morder uma canção na laranja;
nem ouvir que no relógio se enrosca lentamente
a anaconda do dia;
Nem ir procurar aos muros brancos do visível
as fendas onde cresce
a flor escura da realidade.

Às vezes sinto inveja de quem não está obrigado
a abrir em cada nome uma clarabóia
que ilumine
o seu inferno, e o seu sentido;
quem não vê na escada
                                       a terrível
                                                        coluna
                                                                    vertebral
do dragão dos sótãos
ou não pressente nas cruzes a âncora da morte.

Que bonito deve ser um dicionário
em que as palavras não sejam senhas
nem chaves,
nem vitórias,
nem redes,
nem alfândegas,
mas apenas elas mesmas: furacão, cicatriz,
selva,
música,
amante,
silêncio,
molhe...

Às vezes
não queria imaginar que existes,
nem sonhas que as linhas do meu poema deixam
um arranhão na tua pele.

Porque é doce cortar o arame farpado
dos versos rasurados;
saber que no milho se decifra um tigre;
baixar as palavras à procura da sua música,
ser o seu centro
como a capital da dor é a ferida;

e ao mesmo tempo é tão duro
admitir que sofres
a maldição de tudo o que ao não ser exacto
se tem que conformar
com ser só infinito:
cada poema trata
do que não conseguiu o poema anterior

Diz-me tu se no final terei que me arrepender.

Benjamín Prado

(Tradução de Maria Sousa)

terça-feira, 3 de maio de 2016

Eu não sou dessas mulheres incapazes de amor e ternura




















pj harvey | the darker days of me and him

Eu não sou dessas mulheres
incapazes de amor e ternura.
Eu sei o que é coragem e sangue,
embora odeie o sacrifício e me repugne
a vaidade que nasce da violência.
Quero ser mulher de um mercenário,
de um poeta ou de um mártir, é igual.
Eu sei fitar os olhos dos homens,
sei quem merece a minha ternura.

Amalia Bautista

(Não podemos matar a poesia quando ela mora dentro de nós.)