cocorosie | terrible angels
Muito cedo na minha vida foi tarde de mais. Aos dezoito anos era já tarde demais. Entre os dezoito e os vinte e cinco anos o meu rosto partiu numa direcção imprevista. Aos dezoito anos envelheci. Não sei se é assim com toda a gente, nunca perguntei. Parece-me ter ouvido falar dessa aceleração do tempo que nos fere por vezes quando atravessamos as idades mais jovens, mais celebradas da vida. Este envelhecimento foi brutal. Vi-o apoderar-se dos meus traços um a um, alterar a relação que havia entre eles, tornar os olhos maiores, o olhar mais triste, a boca mais definitiva, marcar a fronte de fendas profundas. Em vez de me assustar, vi operar-se este envelhecimento do meu rosto com o interesse que teria, por exemplo, pelo desenrolar de uma leitura. Sabia também que não me enganava, que um dia ele abrandaria e retomaria o seu curso normal. As pessoas que me tinham conhecido aos dezassete anos aquando da minha viagem a França ficaram impressionadas quando me voltaram a ver, dois anos depois, aos dezanove anos. Conservei esse novo rosto. Foi o meu rosto. Envelheceu ainda, evidentemente, mas relativamente menos do que deveria. Tenho um rosto lacerado de rugas secas e profundas, a pele quebrada. Não amoleceu como certos rostos de traços finos, conservou os mesmos contornos mas a sua matéria está destruída. Tenho um rosto destruído.
Já sei muito. Sei uma coisa. Sei que não são os vestidos que fazem as mulheres mais ou menos bonitas, nem os cuidados de beleza, nem o preço dos cremes, nem a raridade, o preço dos enfeites. Sei que o problema está algures. Não sei onde. Sei só que não está onde as mulheres julgam. Olho as mulheres nas ruas de Saigão, nos postos do mato. Há-as muito belas, muito brancas, têm um cuidado extremo com a sua beleza, sobretudo nos postos do mato. Não fazem nada, guardam-se apenas, guardam-se para a Europa, os amantes, as férias em Itália, as longas licenças de seis meses, de três em três anos; quando poderão finalmente falar do que se passa aqui, desta existência colonial tão particular, do serviço desta gente, destes boys, tão perfeitos, da vegetação, dos bailes, destas vivendas brancas, grandes a ponto de nos perdermos nelas, onde estão alojados os funcionários nos postos afastados. Esperam. Vestem-se para nada. Olham-se. Na sombra dessas vivendas, olham-se para mais tarde, julgam viver um romance, têm já longos armários cheios de vestidos a que não sabem que fazer, coleccionados como o tempo, a longa sequência dos dias de espera. Algumas ficam loucas. Algumas são trocadas por uma jovem criada que se cala. Abandonadas. Ouve-se esta palavra atingi-las, o barulho que faz, o barulho da bofetada que ele dá. Algumas matam-se. Esta falta das mulheres a si próprias, por si próprias perpetrada, apareceu-me sempre como um erro. Não havia que atrair o desejo. Ele estava naquela que o provocava ou não existia. Ou estava lá desde o primeiro olhar ou então nunca existira. Era a inteligência imediata da relação de sexualidade ou então não era nada. Isso soube-o eu antes do experiment.
Ela diz-lhe: preferia que não me amasse. Mesmo que me ame gostaria que fizesse como habitualmente faz com as mulheres. Ele olha-a como que apavorado, pergunta: é isso que quer? Ela diz que sim. Ele começou a sofrer ali, no quarto, pela primeira vez, já não mente acerca disso. Diz-lhe que já sabe que ela não o amará nunca. Ela deixa-o dizer. Primeiro diz que não sabe, depois deixa-o dizer. Ele diz-lhe que está só, atrozmente só, com esse amor que tem por ela. Ela diz-lhe que também ela está só. Não diz com quê. Ele diz: seguiu-me até aqui como teria seguido outro qualquer. Ela responde que não pode saber, que nunca seguiu ninguém a quarto nenhum. Ela diz que não quer que lhe fale, o que ela quer é que ele faça como habitualmente faz com as outras mulheres que leva àquele apartamento. Pede-lhe que o faça assim. Ele arrancou o vestido, arrancou as calcinhas de algodão branco e leva-a assim nua até à cama. E depois volta-se para o outro lado na cama e chora. E ela, lenta, paciente, vira-o para si e começa a despi-lo. De olhos fechados, despe-o. Lentamente. Ele quer fazer gestos para a ajudar. Ela pede-lhe que não se mexa. Deixe-me. Ela diz que quer ser ela a fazê-lo. Fá-lo. Despe-o. Quando ela lhe pede ele desloca o corpo na cama, mas muito levemente, como para não a acordar. A pele é duma sumptuosa suavidade. O corpo. O corpo é frágil, sem força, sem músculos, poderia ter estado doente, estar em convalescença, é imberbe, sem outra virilidade que a do sexo, é muito fraco, parece à mercê de um insulto, débil. Ela não o olha no rosto. Não o olha. Toca-o. Toca a doçura do sexo, da pele, acaricia a cor dourada, a desconhecida novidade. Ele geme, chora. Está num estado de amor abominável. E a chorar fá-lo. Primeiro há a dor. E depois esta dor é por sua vez possuída, transformada, lentamente arrancada, levada até ao gozo, abraçada a ela. O mar, sem forma, simplesmente incomparável.
É um homem de hábitos, penso nele de repente, deve vir com relativa frequência a este quarto, é um homem que deve fazer amor muitas vezes, é um homem que tem medo, deve fazer amor muitas vezes para lutar contra o medo. Digo-lhe que me agrada a ideia de que tenha muitas mulheres, a ideia de estar entre essas mulheres, com elas confundida. Olhamo-nos. Ele compreende o que acabo de dizer. O olhar de repente alterado, falso, preso no mal, na morte. Digo-lhe que venha, que deve possuir-me de novo. Ele vem. Cheira bem a cigarro inglês, a perfume caro, cheira a mel, à força a sua pele apanhou o cheiro da seda, da seda aromática do tussor de seda, do ouro, desejo-o. Digo-lhe este desejo dele. Ele diz-me que espere um pouco. Fala-me, diz que soube logo, desde a travessia do rio, que eu seria assim com o primeiro amante, que amaria o amor, diz que sabe já que o hei-de enganar e também que hei-de enganar todos os homens com quem virei a estar. Diz que, no seu caso, foi ele o instrumento da sua própria infelicidade. Estou feliz por tudo o que ele me anuncia e digo-lho. Ele torna-se brutal, está desesperado, deita-se a mim, come os seios de criança, grita, insulta. Fecho os olhos àquele prazer tão forte. Penso: ele está habituado, é o que ele faz na vida, amor, só isso. As mãos são experientes, maravilhosas, perfeitas. Tenho muita sorte, é evidente, é como uma profissão que ele tivesse, sem o saber teria o saber exacto do que se deve fazer, do que se deve dizer. Chama-me puta, porca, diz que sou o seu único amor, e é isso que ele deve dizer e é isso que diz quando deixamos o dizer fazer-se, quando deixamos o corpo fazer e procurar e encontrar e agarrar o que ele quer, e aí tudo é bom, não há desperdícios, os desperdícios são cobertos de novo, vai tudo na torrente, na força do desejo.
É a noite que chega agora. Diz-me que me lembrarei toda a vida desta tarde, mesmo quando tiver esquecido até o seu rosto, o seu nome. Pergunto se me lembrarei da casa. Ele diz-me: olha-a bem. Digo-lhe que é como qualquer outra. Ele diz-me que sim, que é isso, como sempre. Revejo ainda o rosto, e lembro-me do nome. Vejo ainda as paredes caiadas, o estore de lona que dá para a fornalha, a outra porta em arcada que leva ao outro quarto e a um jardim a céu aberto - as plantas morreram de calor - rodeado de balaustradas azuis como o grande palacete de Sadec com terraços em degraus que dá para o Mékong. É um lugar de abandono, naufragado. Pede-me que lhe diga em que penso. Digo-lhe que penso na minha mãe, que ela me matará se souber a verdade. Vejo que ele faz um esforço e depois di-lo, diz que compreende o que a minha mãe quer dizer, di-lo: esta desonra. Diz que não poderia suportar essa ideia em caso de casamento. Olho-o. Ele olha-me por sua vez, desculpa-se com orgulho: sou um chinês. Sorrimos. Pergunto-lhe se é costume estar-se triste como nós estamos. Ele diz que é porque fizemos amor durante o dia, no momento em que o calor é maior. Diz que é sempre terrível depois. Sorri. Diz: quer nos amemos, quer não, é sempre terrível. Diz que há-de passar com a noite, assim que ela chegar. Digo-lhe que não é só por ter sido durante o dia, que está enganado, que estou numa tristeza que já esperava e - que só vem de mim. Que sempre fui triste. Que vejo essa tristeza também nas fotografias em que sou muito pequena. Que hoje esta tristeza, reconhecendo-a embora como a que sempre tive, poderia quase dar-lhe o meu nome, de tal modo se me assemelha. Hoje digo-lhe que é um bem-estar esta tristeza, o de ter finalmente caído numa desgraça que a minha mãe me anuncia desde sempre quando grita no deserto da sua vida. Digo-lhe: não percebo muito bem o que ela diz, mas sei que este quarto é o que eu esperava. Ele vê-me falar, não tira os olhos de mim, olha a minha boca enquanto falo, estou nua, ele acaricia-me, talvez não me ouça, não sei. Eu digo que não faço da desgraça em que me encontro uma questão pessoal. Ele está em cima de mim, abisma-se mais uma vez. Ficamos assim, pregados, a gemer no clamor da cidade ainda exterior.
Marguerite Duras
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