E se, de repente, o tempo se estendesse até ao infinito e o teu olhar, contra o meu olhar, se demorasse e fosse a forma contrária de um desejo que se alastra, o desejo aqui e ali, um riacho a correr ou uma parede a abrir brechas, uma parede a abrir brechas pequenas, a respiração lenta e pesada, o corpo louco de ti, o milésimo de segundo em que deposito um beijo nas tuas pálpebras, a soma de dois corpos, madrugadas sempre adiadas, a grande loucura da felicidade que nunca soube dizer.
E se, de repente, o tempo nos fugisse entre os dedos e o meu olhar, contra o teu olhar, fosse o teu olhar contra o meu olhar, a forma exacta do desejo, universo paralelo, árvore ao vento, pedra redonda, os corpos opacos, o milésimo de segundo em que depositas um beijo nas minhas mãos, depois as almas translúcidas, o gesto, a leveza, os caminhos, o exacto momento em que nos encontramos, a soma de duas vontades, tudo o que há e não há, o princípio de um amor que cresce devagar.
(São três da manhã. Tu permaneces a meu lado, os meus olhos abertos de espanto, e eu sou só um sorriso nos lábios.)
Eu sei que as tulipas são os olhos de todos os aviões perdidos
Eu sei que as cidades são os esqueletos das aves de rapina
Eu sei que os candeeiros ardendo de noite são os pulmões dos peixes-voadores
Eu sei que o mistério é uma dentadura abandonada
Eu sei que a loucura é um braço solitário sorrindo eternamente
Eu sei que os meus olhos são as tuas pernas frementes
Eu sei que os teus cabelos são o meu acendedor de pirilampos
Eu sei que a tua boca é o meu uivo solar
Eu sei que o teu peito e o teu sexo são a minha água profundamente azul
onde se encontram todos os fantasmas já perdidos há séculos.
e a nostalgia acende-se como uma sombra clara.
Tudo o que vemos é longe entre margens de sono.
Arde e repousa a casa numa frescura imensa.
Inclinam-se os campos à memória mais antiga.
É a ausência que sabe em transparência líquida
a ternura mais funda das águas esquecidas.
Que júbilo de lâmpadas, de ervas e de rodas
brancas nos caminhos, que frescura tão limpa!
os volumes vazios da agonia. Toda a substância
se aligeira e desnuda na espessura.
Ver é quase nascer e ver ondear o vento.
Há uma presença branca de uma nuvem esquecida.
Alto, uma linha de silêncio se ilumina.
Primeiro foi o bule,
de seguida foi a asa.
Que mais irás quebrar.
Não sei o que fazer com o teu sim,
o teu não, o teu
passa-me o açúcar.
A distância dos teus olhos não a sei
abreviar, o latido dos teus sonhos
não me deixa adormecer.
Gostava de te amar um pouco menos,
de voltar ao meu rebanho
de feridas e sopores,
regressar ao rijo barro dos Domingos
em que não te conhecia,
ao supor de suas tardes
Quando ainda não sabia
Da dureza do cimento, nem dos modos
De quebrar e ser quebrado.
No fundo, não muito diferente do que fora nos últimos anos. Um vulto sombrio, de uma beleza escura, de anjo das trevas, vivendo como um sonâmbulo, em lugares diferentes que não chegavam, a ser lugar algum...
Por vezes, tomava consciência do mundo, de si mesmo, no silêncio de uma capela, junto ao mar (o som das ondas causava-lhe dor, como algo esquecido há muito tempo), ao descobrir uma coisa que nunca vira antes (que fora só uma palavra), uma rosa, a chama de uma vela.
Um lobo solitário.
Uma história por contar.
Um antro de abismos e de sombras.
E momentos. Longe uns dos outros.
Deixou a mente esvaziar-se e ficou a música. Estranha, terrível, uma marca do fundo.
Sempre lhe provocara medo. Levantou-se e, cambaleando ligeiramente, aproximou-se da porta que dava para o jardim. Por segundos, afundou o rosto no veludo azul. Depois afastou os cortinados com um gesto brusco e abriu a porta.
Lá fora uma claridade suave, quase inesperada, depois da luz artificial do interior.
Respirou o ar fresco, os perfumes da terra, dá água, das plantas.
– Quero sair de mim próprio – disse baixinho.
Mas quando se afundou no jardim, compreendeu que estava no mesmo lugar.
Um trompe l’oeil.
Aos poucos, começou a ver como num espelho.
Seguiu por uma alameda de rododendros, que o fazia invariavelmente pensar em Manderley; quase esperava ouvir o mar, descobrir a pequena casa de praia onde Rebecca de Winter recebia os seus amantes.
*
Deteve-se junto a uma Michelia enorme, de flores brancas de perfume muito doce. Apeteceu-lhe morder uma pétala.
Um vasto relvado onde os trevos se estendiam sempre um pouco mais longe.
Densos bosques de camélias.
As fúchsias vermelhas caíam como chuvas dos caules cinzentos de onde as folhas tinham desaparecido.
E as magnólias começavam a florir. Os botões carnudos esboçavam-se nos ramos nus, endureciam lentamente.
Haviam bancos de longe em longe, e um recanto onde as sebes tinham forma de pássaros. Pássaros imóveis, perfeitos, como se um jardineiro fantasma mantivesse o desenho eternamente.
Um campo de antólisas, no meio das quais florescia, solitário, um narciso.
Lembrou-se de A Rainha das Neves. Cada flor tem uma história para contar, cada flor tem uma única história.
E, como no jardim da feiticeira, ali não havia rosas.
Todas as flores, menos rosas.
Que terrível recordação trariam as rosas? Que história...
Aproximava-se agora de uma parte do jardim de que gostava particularmente.
As sebes estavam aparadas, mas formavam umas figuras estranhas, vagamente monstruosas, que não conseguia identificar. No centro havia um poço em forma octogonal, um espelho de azul e folhas, nenúfares e água escura. Na extremidade, uma bela flor de pedra.
À volta existiam pequenos degraus com canteiros, nos quais descobrira, quase dissimulada entre os arbustos, uma estatueta branca. Representava ma mulher nua, ajoelhada, o rosto descansando no braço, o cabelo caindo-lhe pelas costas.
Parou a alguma distância, deixando que os elementos se confundissem num quadro, com as árvores e o céu azul ao fundo.
E então viu uma mulher que descia lentamente os degraus.
Tinha o cabelo pela cintura, um vestido branco semitransparente que lhe chegava aos tornozelos, os pés descalços.
Esteve quase a chamá-la. Mas algo o fez conter-se.
Era Marisa e no entanto não era ela.
O cabelo era um pouco mais comprido, mais selvagem.
Os olhos não pareciam verdes mas talvez cinzentos.
Havia nela uma ausência de cor que o fez pensar na estátua branca.
Mas era bela.
Bela a preto e branco.
Apesar da pálida luz do Sol, sentiu a presença da Lua.
Ela avançava pelo relvado, o corpo quase visível através do vestido, os movimentos longos, angulosos. Chegou ao poço, que ficava ao nível do solo. Por momentos deteve-se com o pé na flor de pedra.
Depois caminhou com passos leves sobre a água do poço.
Tom sentiu frio. E uma solidão absoluta, como nunca experimentara antes.
Fechou os olhos.
Quando os abriu, avistou apenas um rasto do vestido branco que desaparecia entre as árvores.
bonnie prince billy | you will miss me when i burn
mais nada se move em cima do papel nenhum olho de tinta iridescente pressagia o destino deste corpo
os dedos cintilam no húmus da terra e eu indiferente à sonolência da língua ouço o eco do amor há muito soterrado
encosto a cabeça na luz e tudo esqueço no interior desta ânfora alucinada
desço com a lentidão ruiva das feras ao nervo onde a boca procura o sul e os lugares dantes povoados ah meu amigo demoraste tanto a voltar dessa viagem
o mar subiu ao degrau das manhãs idosas inundou o corpo quebrado pela serena desilusão
assim me habituei a morrer sem ti com uma esferográfica cravada no coração