terça-feira, 6 de novembro de 2012

O anjo esquecido


cowboy junkies | misguided angel

Alimentar-se do que o rodeava.
Uma personagem de si próprio.
No fundo, não muito diferente do que fora nos últimos anos. Um vulto sombrio, de uma beleza escura, de anjo das trevas, vivendo como um sonâmbulo, em lugares diferentes que não chegavam, a ser lugar algum...
Por vezes, tomava consciência do mundo, de si mesmo, no silêncio de uma capela, junto ao mar (o som das ondas causava-lhe dor, como algo esquecido há muito tempo), ao descobrir uma coisa que nunca vira antes (que fora só uma palavra), uma rosa, a chama de uma vela.
Um lobo solitário.
Uma história por contar.
Um antro de abismos e de sombras.
E momentos. Longe uns dos outros.
Deixou a mente esvaziar-se e ficou a música. Estranha, terrível, uma marca do fundo.
Sempre lhe provocara medo. Levantou-se e, cambaleando ligeiramente, aproximou-se da porta que dava para o jardim. Por segundos, afundou o rosto no veludo azul. Depois afastou os cortinados com um gesto brusco e abriu a porta.
Lá fora uma claridade suave, quase inesperada, depois da luz artificial do interior.
Respirou o ar fresco, os perfumes da terra, dá água, das plantas.
Quero sair de mim próprio – disse baixinho.
Mas quando se afundou no jardim, compreendeu que estava no mesmo lugar.
Um trompe l’oeil.
Aos poucos, começou a ver como num espelho.
Seguiu por uma alameda de rododendros, que o fazia invariavelmente pensar em Manderley; quase esperava ouvir o mar, descobrir a pequena casa de praia onde Rebecca de Winter recebia os seus amantes. 

*

Deteve-se junto a uma Michelia enorme, de flores brancas de perfume muito doce. Apeteceu-lhe morder uma pétala.
Um vasto relvado onde os trevos se estendiam sempre um pouco mais longe.
Densos bosques de camélias.
As fúchsias vermelhas caíam como chuvas dos caules cinzentos de onde as folhas tinham desaparecido.
E as magnólias começavam a florir. Os botões carnudos esboçavam-se nos ramos nus, endureciam lentamente.
Haviam bancos de longe em longe, e um recanto onde as sebes tinham forma de pássaros. Pássaros imóveis, perfeitos, como se um jardineiro fantasma mantivesse o desenho eternamente.
Um campo de antólisas, no meio das quais florescia, solitário, um narciso.
Lembrou-se de A Rainha das Neves. Cada flor tem uma história para contar, cada flor tem uma única história.
E, como no jardim da feiticeira, ali não havia rosas.
Todas as flores, menos rosas.
Que terrível recordação trariam as rosas? Que história...

Aproximava-se agora de uma parte do jardim de que gostava particularmente.
As sebes estavam aparadas, mas formavam umas figuras estranhas, vagamente monstruosas, que não conseguia identificar. No centro havia um poço em forma octogonal, um espelho de azul e folhas, nenúfares e água escura. Na extremidade, uma bela flor de pedra.
À volta existiam pequenos degraus com canteiros, nos quais descobrira, quase dissimulada entre os arbustos, uma estatueta branca. Representava ma mulher nua, ajoelhada, o rosto descansando no braço, o cabelo caindo-lhe pelas costas.
Parou a alguma distância, deixando que os elementos se confundissem num quadro, com as árvores e o céu azul ao fundo.
E então viu uma mulher que descia lentamente os degraus.
Tinha o cabelo pela cintura, um vestido branco semitransparente que lhe chegava aos tornozelos, os pés descalços.
Esteve quase a chamá-la. Mas algo o fez conter-se.
Era Marisa e no entanto não era ela.
O cabelo era um pouco mais comprido, mais selvagem.
Os olhos não pareciam verdes mas talvez cinzentos.
Havia nela uma ausência de cor que o fez pensar na estátua branca.
Mas era bela.
Bela a preto e branco.

Apesar da pálida luz do Sol, sentiu a presença da Lua.
Ela avançava pelo relvado, o corpo quase visível através do vestido, os movimentos longos, angulosos. Chegou ao poço, que ficava ao nível do solo. Por momentos deteve-se com o pé na flor de pedra.
Depois caminhou com passos leves sobre a água do poço.
Tom sentiu frio. E uma solidão absoluta, como nunca experimentara antes.
Fechou os olhos.
Quando os abriu, avistou apenas um rasto do vestido branco que desaparecia entre as árvores.

Ana Teresa Pereira

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