quarta-feira, 30 de novembro de 2011
A little bit of love to take the pain away
spiritualized | ladies and gentlemen we are floating in space
nalgum lugar onde eu nunca estive, e felizmente aquém
de qualquer experiência, os teus olhos têm o seu silêncio:
no teu gesto mais frágil há coisas que me envolvem,
ou que não ouso tocar porque estão demasiado perto
o teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra
embora eu me tenha fechado como dedos, nalgum lugar
me entreabres sempre, pétala por pétala, como a Primavera
(por toques habilidosos, misteriosamente) abre a primeira rosa
ou se quiseres ver-me fechado, eu e a
minha vida nos encerraremos lindamente, de repente,
assim como o coração desta flor imagina
a neve - cuidadosamente - descendo em toda a parte;
nada do que podemos perceber neste mundo se compara
ao poder da tua imensa fragilidade: cuja textura
me compromete com a cor dos seus continentes,
e me entrega para a morte cada vez que respiro
(nada sei do que te faz tão poderosa
ao mover-me; mas algo em mim compreende apenas
que a voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva, tem as mãos tão pequenas.
e. e. cummings
segunda-feira, 28 de novembro de 2011
O vermelho por dentro
beth gibbons | mysteries
Estão envolvidos em corpos negros vermelhos por
dentro. Estão num barco sobre o mar e o mar é
negro. É de noite. O céu está negro e sobre a
água negra tudo é vermelho por dentro.
Os corpos eram negros
sobre o mar a água era de noite
não se via o vermelho por dentro
os corpos não se viam
eram barcos com os ventres todos negros
e as línguas eram de águas muito rentes
A sangue não sabia
não se via o vermelho por dentro
o céu a água envolvia
tudo envolvia nos vermelhos dentros
e os mares todas as noites estavam negros
negros por dentro
E a água volvia pelo céu tão negra
e à noite por dentro do mar todo vermelho
a noite era vermelha
e os barcos negros por dentro
E nos corpos a água negra era vermelha por dentro
e eles estavam envolvidos
e
Ana Hatherly
sábado, 26 de novembro de 2011
O meu destino é um passeio triste no jardim das memórias
javier navarrete | nana del laberinto del fauno (el laberinto del fauno ost)
Todo o meu ser é um cântico negro
que te levará
fazendo-te durar
ao despertar dos crescimentos e florescimentos eternos
neste cântico eu suspirei tu suspiraste
neste cântico
eu acrescentei-te à árvore à água ao fogo.
A vida é talvez
uma rua comprida pela qual uma mulher segurando
um cesto passa todos os dias.
A vida é talvez
uma corda com a qual um homem se enforca num ramo
a vida é talvez uma criança a regressar a casa da escola.
A vida é talvez acender um cigarro
na pausa narcótica entre fazer amor e fazer amor
ou o olhar ausente de um homem que passa
tirando o chapéu a um outro homem que passa
com um sorriso vazio e um bom dia.
A vida é talvez esse momento fechado
quando o meu olhar se destrói na pupila dos teus olhos
e está no sentimento
que eu irei pôr na impressão da Lua
e na percepção da Noite.
Num quarto grande como a solidão
o meu coração
que é grande como o amor
olha os simples pretextos da sua felicidade
o belo murchar das flores no vaso
a jovem árvore que plantaste no teu jardim
e o canto dos canários
que cantam para o tamanho de uma janela.
Ah
este é o meu destino
este é o meu destino
o meu destino é
um céu que desaparece com a queda de uma cortina
o meu destino é despenhar-me no voo de estrelas agora inúteis
reconquistar qualquer coisa no meio da putrefacção e da nostalgia
o meu destino é um passeio triste no jardim das memórias
e morrer na dor de uma voz que me diz
eu amo
as tuas mãos.
Irei plantar as minhas mãos no jardim
crescerei eu sei eu sei eu sei
e as andorinhas virão pôr ovos
no vazio das minhas mãos manchadas de tinta.
Vou usar
um par de cerejas gémeas como brincos
e pôr pétalas de dália nas minhas unhas
há um beco
onde os rapazes que se apaixonaram por mim
se demoram ainda com o mesmo cabelo despenteado
os mesmos pescoços finos e as mesmas pernas magras
e pensam nos sorrisos inocentes de uma rapariga
que foi levada pelo vento uma noite.
Há um beco
que o meu coração roubou
às ruas da minha infância.
A viagem de uma forma na linha do tempo
fecundando a linha do tempo com a forma
uma forma consciente de uma imagem
a regressar de uma carícia num espelho.
E é desta maneira
que alguém morre
e alguém segue vivendo.
Nenhum pescador jamais achará uma pérola num pequeno regato
que se esvazia num lago.
Eu conheço uma pequena e triste fada
que vive num oceano
e toca a flauta mágica do seu coração
suave, suavemente
pequena e triste fada
que morre com um beijo todas as noites
e com um beijo renasce a cada amanhecer.
Forough Farrokhzad
terça-feira, 22 de novembro de 2011
Um amor feliz
pj harvey | oh my lover
Tola supersticão. Infundado receio. É já sorrindo que transpõe os últimos metros que nos separam; é sempre sorrindo, e sem as prudências habituais, que logo me beija, encostando a cabeça ao meu ombro, antes ainda de eu fechar a porta. Em seguida, procurando os meus olhos, com a expressão de quem deseja sentir-se perdoada de não sei que falta, quase soletra as seguintes palavras:
Olhe que eu não podia fazer outra coisa.
Imediatamente percebo que se refere ao nosso frustrado encontro de anteontem, no território dos ameríndios:
Claro que não. Nem eu. Teve de ser assim.
Afago-lhe os cabelos, depois a testa; e beijo-lhe, entre as sobrancelhas, as duas rugazinhas preocupadas que só agora se desvanecem. Entretanto, pela habitual pressão de cada um dos calcanhares sobre o outro, já se libertou dos seus sapatos. A contrastar com esta desenvoltura, a hesitacãoo com que me pede:
Pode arranjar-me um copo de água? Mesmo água. Só água. O mais fria possível.
Quando volto lá de dentro, com dois copos numa das mãos e meia garrafa de água na outra, encontro-a aqui em pé, de costas para o divã, inteiramente despida. Sorrindo sempre, ei-la que exclama:
Ah! Veio tão depressa... Queria fazer-lhe uma surpresa.
Só neste instante reparo que lhe pende da mão esquerda uma comprida e branca peça de roupa, quase etérea de tão rendada: é uma camisa de noite, que logo enfia pela cabeça e logo toda a modela desde o alto dos seios até aos tornozelos. Pela minha parte acabei de lançar água num dos copos, a seguir no outro (também estou com sede) e de colocar os dois em cima da cómoda. Mas nem tenho tempo para me desembaraçar da garrafa, tão rápido é o movimento com que a Y, aproximando-se, colando-se a mim, ao longo do meu corpo se deixa agora deslizar; e, meio de joelhos, meio sentada - melhor dizendo apoiada de lado sobre as pernas flectidas debaixo dos quadris -, pega-me de súbito na única mão que tenho livre e leva-a à boca, não propriamente para a beijar, antes para a premir, muito de leve, de encontro aos seus lábios. começa então a falar, em voz sempre baixa mas distintamente, como se através da minha mão se quisesse fazer ouvir:
Tenho sido muito estúpida, não tenho? Très sotte, eu sei. Às vezes não entendo, não consigo entender o que se passa comigo. Quando estou longe de si... tanta coisa, tantas coisas para lhe dizer! Mas não há tempo, nunca há tempo. E, sem tomar fôlego, como se tudo se encadeasse: Sabe que vim hoje muito cedo para Lisboa? Nem foi no meu carro. Não pegava. Desisti logo. O meu marido estava também para sair, aproveitei e vim com ele até à fábrica. Depois, de táxi (chamaram de lá um táxi), corri umas poucas de boutiques, primeiro no Bairro Azul, a seguir ali para os lados da Rua Castilho, outra vez no Bairro Azul. Mas não queria aparecer, não podia aparecer, sem trazer hoje esta camisa de noite.
Já pousei a garrafa sobre o tampo da cómoda. Enfio os dedos dessa mão, que finalmente me ficou livre, por entre os seus cabelos, vivos, revoltos, mais encrespados do que é costume.
Há-de pensar que sou doida... Não tem importância. Não é isso que tem importância. Respirando fundo: Esta camisa... Não era bem esta camisa que eu queria. Mas vai aqui ficar, vou aqui deixá-la. Quero-a estrear consigo, ao pé de si. Quero dormir muitas vezes com ela. Ao seu lado. Aqui. Por enquanto aqui. E sorvendo novo gole de ar: Tem que me dar tempo. O que você quer é igual ao que eu quero. Mas não é fácil. Não pode ser assim depressa como nós queremos.
Sem saber como, já estou também sentado no chão - ou de joelhos - ao lado da Y. E é com os olhos bem fixos nos meus, imensamente junto dos meus, mas falando sempre como os lábios encostados à minha mão, que ainda acrescenta:
Outro dia... sabe? O que me custou, o que me desorientou... foi ter-me dito aquilo como um modo so angry. Parecia que me estava a dar um castigo. Eu sei que era o contrário. Mas parecia um castigo.
A poltrona, o espelho. A camisa de noite retirada à pressa, depois novamente vestida; mais tarde, outra vez ainda abandonada como um trapo inútil; por fim dobrada com todo o cuidado, arrumada com todo o cuidado na segunda gaveta aí da cómoda.
Entretanto, o divã: a coberta arredada, os lençóis desfeitos. Fruta e água, água e fruta; apenas fruta, apenas água, alternando ao longo de todo o dia. E, cerca das seis da tarde, a tarefa já um tanto sonâmbula, mas partilhada com gosto, de esticar os lençóis, de prender os lençóis, de repor a coberta, de lavar lá dentro pratos e copos, de deixar tudo numa aparência de ordem - como se afinal nem precisássemos da Floripes. Uma espécie de ensaio; talvez, para a nós próprios provarmos que seremos capazes, se for caso disso, de uma vida mais simples, de prescindirmos até de certos auxílios ou de certas facilidades de que dispomos.
David Mourão-Ferreira
segunda-feira, 21 de novembro de 2011
But i didn't know that we could break a silver lining
tori amos | a sorta fairytale
Não dizia palavras,
aproximava apenas um corpo interrogante,
porque ignorava que o desejo é uma pergunta
cuja resposta não existe,
uma folha cujo ramo não existe,
um mundo cujo céu não existe.
Entre os ossos a angústia abre caminho,
ergue-se pelas veias
até abrir na pele
jorros de sonho
feitos carne interrogando as nuvens.
Um contacto ao passar,
um fugidio olhar no meio das sombras,
bastam para que o corpo se abra em dois,
ávido de receber em si mesmo
outro corpo que sonhe;
Metade e metade, sonho e sonho, carne e carne,
Iguais em figura, iguais em amor, iguais em desejo.
Embora seja só uma esperança,
porque o desejo é uma pergunta cuja resposta ninguém sabe.
Luis Cernuda
domingo, 20 de novembro de 2011
Mas houve uma palavra - meu Deus
jacques brel | la chanson des vieux amants
A certa altura não pude mais. E disse, e disse, secretamente, dificilmente. E disse. Devagar.
- Amo-te.
E ela sorriu
- Também te amo.
Uma palavra. Disse-a. Amo-te - uma palavra breve. Quantos milhões de palavras eu disse durante a vida. E ouvi. E pensei. Tudo se desfez. Palavras sem inteira significação em si, o professor devia ter razão. Palavras que remetiam umas para as outras e se encostavam umas às outras para se aguentarem na sua rede aérea de sons. Mas houve uma palavra - meu Deus. Uma palavra que eu disse e repercutiu em ti, palavra cheia, quente de sangue, palavra vinda das vísceras, da minha vida inteira, do universo que nela se conglomerava, palavra total. Todas as outras palavras estavam a mais e dispensavam-se e eram uma articulação ridícula de sons e mobilizavam apenas a parte mecânica de mim, a parte frágil e vã. Palavra absoluta no entendimento profundo do meu olhar no teu, palavra infinita como o verbo divino. Recordo-a agora - onde está? como se desfez? ou não desfez mas - se alterou e resfriou e absorveu apenas a fracção de mim onde estava a ternura triste, o conforto humilde, a compaixão. Não haverá então uma palavra que perdure e me exprima todo para a vida inteira? E não deixe de mim um recanto oculto que não venha à sua chamada e vibre nela desde os mais finos filamentos de si? Uma palavra. Recupero-a agora na minha imaginação doente. Amo-te. Na intimidade exclusiva e ciumenta do nosso mútuo e encantado. Fecha-nos o lençol na claridade difusa do amanhecer, estás perto de mim no intocável da tua doçura. Frágil de névoa. Fímbria de sorriso e de receio, de pavor, no meu olhar embevecido. Uma palavra. A primeira que em toda a minha vida me esgotou o ser. A que foi tão completa e absorvente, que tudo o mais foi um excesso na criação. Deus esgotou em mim, na minha boca, todo o prodígio do seu poder. Ao princípio era a palavra. Eu a soube. E nada mais houve depois dela.
Vergílio Ferreira
quinta-feira, 17 de novembro de 2011
You better turn around and blow your kiss hello to life eternal
jeff buckley | eternal life (live at sin-é)
Relentless, endless joy peaking into tears, resting into calmness, a shimmering beauty. If you let yourself listen with the whole of yourself, you will have the pure feeling of flight while firmly rooted to the ground... My musical influences? Love, anger, depression, joy and dreams. And Zeppelin. Totally. Everybody knows what it's like to create an artistic moment. If you've spent a night making love, you know exactly what it means. To strip your ego where you are expressing yourself, wordlessly, collaborating on a moment that has an energy about it that is completely inspirational in a way you could never imagine. That's the way art really is. Grace is what matters. In anything. Especially life, especially growth, tragedy, pain, love, death. About people, that's what matters. That's a quality I admire very greatly. It keeps you from reaching for the gun too quickly; it keeps you from destroying things too foolishly; it sort of keeps you alive and keeps you open for more understanding. I want to be ripped apart by music. I want it to be something that feeds and replenishes, or that totally sucks the life out of you. I want to be dashed against the rocks. Music is my mother and my father; it is my work and my rest... my blood... my compass... my love... Music is endless. The thing is that I want it all next week, right now, this millisecond. The leader, the instigator, the creator, the cold origination; life should sparkle and rush, burn with fire, hot like melting steel, like freeze-burn from a comet. Be seriously involved with growing, with your own development, and never fear. Be the kind of person who is naturally powerful, positive, ingenious, open, to the highest degree, but with no interest in coercion or pressure or power over other people. That kind of power is hollow. It contains nothing and brings you nothing in the long run. Be the best. No negativity. No weakness. No acquiescence to fear or disaster. No errors of ignorance. No evasion from reality. I love anything that haunts me... and never leaves. People are all divine.
Jeff Buckley (November 17, 1966 – May 29, 1997)
quarta-feira, 16 de novembro de 2011
Just the softest little breathless word
grinderman | palaces of montezuma
Estás aqui comigo à sombra do sol
escrevo e oiço certos ruídos domésticos
e a luz chega-me humildemente pela janela
e dói-me um braço e sei que sou o pior aspecto do que sou
Estás aqui comigo e sou sumamente quotidiano
e tudo o que faço ou sinto como que me veste de um pijama
que uso para ser também isto este bicho
de hábitos manias segredos defeitos quase todos desfeitos
quando depois lá fora na vida profissional ou social só sou um nome e sabem
o que sei o
que faço ou então sou eu que julgo que o sabem
e sou amável selecciono cuidadosamente os gestos e escolho as palavras
e sei que afinal posso ser isso talvez porque aqui sentado dentro de casa sou
outra coisa
esta coisa que escreve e tem uma nódoa na camisa e só tem de exterior
a manifestação desta dor neste braço que afecta tudo o que faço
bem entendido o que faço com este braço
Estás aqui comigo e à volta são as paredes
e posso passar de sala para sala a pensar noutra coisa
e dizer aqui é a sala de estar aqui é o quarto aqui é a casa de banho
e no fundo escolher cada uma das divisões segundo o que tenho a fazer
Estás aqui comigo e sei que só sou este corpo castigado
passado nas pernas de sala em sala. Sou só estas salas estas paredes
esta profunda vergonha de o ser e não ser apenas a outra coisa
essa coisa que sou na estrada onde não estou à sombra do sol
Estás aqui e sinto-me absolutamente indefeso
diante dos dias. Que ninguém conheça este meu nome
este meu verdadeiro nome depois talvez encoberto noutro
nome embora no mesmo nome este nome
de terra de dor de paredes este nome doméstico
Afinal fui isto nada mais do que isto
as outras coisas que fiz fi-las para não ser isto ou dissimular isto
a que somente não chamo merda porque ao nascer me deram outro nome
que não merda
e em princípio o nome de cada coisa serve para distinguir uma coisa das
outras coisas
Estás aqui comigo e tenho pena acredita de ser só isto
pena até mesmo de dizer que sou só isto como se fosse também outra coisa
uma coisa para além disto que não isto
Estás aqui comigo deixa-te estar aqui comigo
é das tuas mãos que saem alguns destes ruídos domésticos
mas até nos teus gestos domésticos tu és mais que os teus gestos domésticos
tu és em cada gesto todos os teus gestos
e neste momento eu sei eu sinto ao certo o que significam certas palavras como
a palavra paz
Deixa-te estar aqui perdoa que o tempo te fique na face na forma de rugas
perdoa pagares tão alto preço por estar aqui
perdoa eu revelar que há muito pagas tão alto preço por estar aqui
prossegue nos gestos não pares procura permanecer sempre presente
deixa docemente desvanecerem-se um por um os dias
e eu saber que aqui estás de maneira a poder dizer
sou isto é certo mas sei que tu estás aqui
Ruy Belo
segunda-feira, 14 de novembro de 2011
It's a clear and easy pleasure
nick cave & the bad seeds | sweetheart come
I have never loved a woman for herself alone, but because I was caught up in the time with her, between train arrivals and train departures and other commitments. I have loved because she was beautiful and we were two humans lying in the forest at the edge of a dark lake or because she was not beautiful and we were two humans walking between buildings who understood something about suffering. I have loved because so many loved her or because so many were indifferent to her, or to make her believe that she was a girl in a meadow upon whose approved knees I laid my head or to make her believe that I was saint and that she had been loved by a saint. I never told a woman I liked her and when I wrote the words My love, I never meant it to mean I love you.
Leonard Cohen
quinta-feira, 10 de novembro de 2011
All these people drinking lover's spit
broken social scene & feist | lover's spit
Separo-me de ti nos solstícios de verão, diante da mesa do juiz supremo
dos amantes. Para que os juízes me possam julgar, conhecerão primeiro o
amor desonesto infinito feito de marés ambulantes de espinhos nas pálpebras
onde as ruas são os pontos únicos do furor erótico e onde todos os pontos
únicos do amor são ruas estreitíssimas velocíssimas
que se percorrem como um fio de prumo sem oscilação.
Ontem antes de ontem antes de amanhã antes de hoje antes deste
número-tempo deste número-espaço uma boca feita de lábios alheios beijou.
Precipício aberto: ele nada revela que tu já não saibas.
Porque este contágio de precipícios foste tu que mo comunicaste
maléfico como um pássaro sem bico.
Num silêncio breve vestiu-se a cidade. Muito bom-dia querido
moribundo. Sozinho declaraste a terceira grande paz mundial quando abrindo
os olhos me deste de comer cronometricamente às mil e tantas horas da
manhã de hoje.
Deito-me cedo contigo o meu sono é leve para a liberdade acordas-
-me só de pensares nela. As casas e os bichos apoiam-se em ti. Não fujas não
te mexas: vou fixar-te para sempre nessa posição.
Que há? Abrem-se fendas no ar que respiro vejo-lhe o fundo. Tens os
olhos vasados. Qual de nós os dois quero-Te gritou?
Bebe-me espaçadamente encostada aos muros. Se és poeta que fazes tu?
Comes crianças jogas ases sentado és uma estátua de pé a cauda de um cometa.
Mães entretanto vão parindo. Os filhos morrerão ainda? Entregas-te a
cálculos. Amas-me demais.
Confesso: não sei se sou amada por ti.
Virás
quando houver uma fala indestrutível devolvida à boca dos mais vivos. Então
virás
vivo também. Sempre esperei ver-te ressuscitado. Desiludiste-me.
E iremos com o plural de nós nos leitos menores onde o riso, onde o
leito do rio é um filho entre os dois. Que farei de teus braços de meus cabelos
benignos que faremos?
Nasci-te da minha pele com algumas fêmeas te deitei por vezes.
Conheces-me. Não me tens amor.
Grave esta corda cortada agudo seixo me ataste aos olhos para me
afundar.
Só por grande angústia me condenas à morte se de mim te veio a cidade
e os minúsculos objectos que já amaste ou que irás amar um dia espero.
Ah a cratera o abismo eléctrico!
Por isso o teu novo amor será comigo mais perigoso que este imaculado
com mais visco de amor cópula mortal.
Calo-me.
Reparei de repente que não estavas aqui. Pus-me a falar a falar. Coisas
de mulher desabitada. Sei que um dia desviarei sem ti os passeios rectos
esvaziarei os gordos manequins falantes. A razão é uma chapa de ferro
ao rubro: se acredito na tua morte começo o suicídio.
Enquanto penetrantemente te espero a luz coalhou. Os pássaros
coalharam enquanto te espero. O leite enquanto te espero coalhou. Haverá
outro verbo?
Submersa, muito distante de qualquer inferno de um paraíso qualquer existo
eu. Existirão tais palavras?
É a altura de escrever sobre a espera. A espera tem unhas de fome, bico
calado, pernas para que as quer. Senta-se de frente e de lado em qualquer
assento. Descai com o sono a cabeça de animal exótico enquanto os olhos se
fixam sobre a ponta do meu pé e principiam um movimento de rotação em
volta de mim em volta de mim de ti.
Nunca te conheci - assim explico o teu desaparecimento. Ou antes:
separei-me de ti no solstício de um verão ultrapassado. As mulheres viajavam
pela cidade completamente nuas de corpo e espírito. Os homens mordiam-
-se com cio. Imperturbável pertenceste-me. Assim nos separámos.
Não calhasse morrer um de nós primeiro que o outro porque ambos ao
mesmo tempo será impossível enquanto não houver relógios que meçam
este tempo e as horas fielmente se adiantarem e atrasarem.
Alguma vez pretendi dizer-te o que quer que fosse? Falava por paixão
por tibieza por desgosto por claridade por frio por cansaço
nunca por pretender dizer o que quer que fosse.
Não me desculpo. Se já me cai o cabelo se já não sinto os ombros é
porque o amor é difícil ou a minha cabeça uma pedra escura que carrego
sobre o corpo a horas e desoras ostentando-a como objecto público sagrado
purulento. O odor que as pedras têm quando corpos. O apocalipse de tudo
quando amamos. O nosso sangue em pó tornado entornado.
O teu amor espreita o meu corpo de longe. De longe por gestos
lhe respondo. Tenho raízes nos vulcões ternuras íntimas medos reclu-
-sos beijos nos dentes.
A pobreza surge dentro de nós embora cautelosos deitados de manhã e
de tarde ou simplesmente de noite despertos. Ambos meu amigo estamos
sentados neste momento perfeitamente incautos já. Contemplamos um país
e sentamo-nos e vestimo-nos e comemos e admiramos os monumentos e
morremos.
Inventei a nossa morte em toda a impossível extensão das palavras.
Aterrorizei-me segundos a fio enquanto em corpo nu ouvindo-me ador-
-mecias devagar.
Com a precaução de quem tem flores fechadas no peito passeei de noite
pela casa. Um fantasma forçou uma porta atrás de mim. Gemendo como um
animal estrangulado acordei-te.
Enterro o meu terror como um alfange na terra. Porque é preciso ter
medo bastante para correr bastante toda a casa celebrar bastantes missas negras
atravessar bastante todas as ruas com demónios privados nas esquinas.
Só o amor tem uma voz e um gesto mesmo no rosto da ideia que me
impus da morte.
És tu tão único como a noite é um astro.
Sobre a poeira que te cobre o peito deixo o meu cartão de visita o meu
nome profissão morada telefone.
Disse-te: Eis-me.
E decepei-te a cabeça de um só golpe.
Não queria matar-te. Choro. Eis-me! Eis-me!
Luiza Neto Jorge
segunda-feira, 7 de novembro de 2011
E a calma a aguardar lugar em mim
márcia & jp simões | a pele que há em mim (quando o dia entardeceu)
Ficávamos no quarto até anoitecer, ao conseguirmos
situar num mesmo poema o coração e a pele quase podíamos
erguer entre eles uma parede e abrir
depois caminho à água.
Quem pelo seu sorriso então se aventurasse achar-se-ia
de súbito em profundas minas, a memória
das suas mais longínquas galerias
extrai aquilo de que é feito o coração.
Ficávamos no quarto, onde por vezes
o mar vinha irromper. É sem dúvida em dias de maior
paixão que pelo coração se chega à pele.
Não há então entre eles nenhum desnível.
Luís Miguel Nava
domingo, 6 de novembro de 2011
Tu és maior que esta alegria de haver rios
okkervil river | mermaid
És tu quem perseguimos pelos lábios
e tens em equilíbrio os seres e o tempo
És tu quem está nos começos do mar
e as nossas palavras vão molhar-te os pés
Tu tens na tua mão as rédeas dos caminhos
descem do teu olhar as mais nobres cidades
onde nasceram os primeiros homens
e onde os últimos desejarão talvez morrer
Tu és maior que esta alegria de haver rios
e árvores ou ruas donde serem vistos
Por ti é que aceitamos a manhã
sacrificada aos vidros das janelas
aceitamos por ti o sol ou a neblina
que faz dos candeeiros sentinelas
É para ti que os pensamentos se orientam
e se dirigem os passos transviados
e o vento que nos veste nas esquinas
És sempre como aquele que encontramos
diariamente pela rua fora
e a pouco e pouco vemos onde mora
Só tu é que nos faltas quando reparamos
que os papéis nos vão envelhecendo
e os dias um por um morrendo em nossas mãos
És tu que vens com todos os versos
És tu quem pressentimos na chuva adivinhada
quando os olhos ainda se nos fecham
embora o sono nunca mais seja possível
É tua a face oposta a todas as manhãs
onde o tempo levanta ombros de espuma
que deixam fundas rugas pelas faces
Os céus contam contigo é para teu repouso
a terra combalida e sem caminhos
Ser indecomponível teu corpo foi maior
que vítimas e oblações. Quando tu vens
a solidão cai leve como a flor do lírio
e as aves nos pauis levantam voo
e há orvalho em teus primeiros pés
Não assistisses tu a esta nossa vida
caíssem-nos os gestos ou quebrados ou dispersos
e nenhum rosto decisivo um dia fecharia
todas as palavras com que dissemos os versos
Ruy Belo
quinta-feira, 3 de novembro de 2011
But the light of the world will still shine for us there
steve adey | find the way
Chamo
a cada ramo
de árvore
uma asa.
E as árvores voam.
Mas tornam-se mais fundas
as raízes da casa,
mais densa
a terra sobre a infância.
É o outro lado
da magia.
E a nuvem
no céu há tantas horas,
água suspensa
porque eu quis,
desmorona-se e cai.
Caem com ela
as árvores voadoras.
Céu
sem uma gota
de terra.
Carlos de Oliveira
quarta-feira, 2 de novembro de 2011
Entrar dentro de ti como num bosque
the abbasi brothers | something like nostalgia
Cansado de ser homem durante o dia inteiro
chego à noite com os olhos rasos de água.
Posso então deitar-me ao pé do teu retrato,
entrar dentro de ti como num bosque.
É a hora de fazer milagres:
posso ressuscitar os mortos e trazê-los
a este quarto branco e despovoado,
onde entro sempre pela primeira vez,
para falarmos das grandes searas de trigo
afogadas na luz do amanhecer.
Posso prometer uma viagem ao paraíso
a quem se estender ao pé de mim,
ou deixar uma lágrima nos meus olhos
ser toda a nostalgia das areias.
Eugénio de Andrade
terça-feira, 1 de novembro de 2011
Cartas de Outono
azure ray | november
Enquanto dormes constrói-me um rosto de luz, no limbo do teu sonho. Toca-o e acorda-me. Caminha comigo, peço-te, na inquietação daquele rosto, e nesta alegria suspensa na solidão.
Há séculos que te esperava para fugirmos. E não sabia que a fuga era possível pelas estradas de giestas em direcção ao mar. Dorme e consente que o meu coração escute o teu. Quero arder contigo, nesta eternidade feita de pontes atravessadas, kms nocturnos e segundos de asfaltos.
Para trás ficou a cidade. E tu sabes que a cidade só existe no apanhar um táxi. E perdermo-nos até amanhã – sem querer podermos dizer adeus, porque não se pode dizer adeus à paixão.
Amanhã ou enquanto dormes – agora mesmo – vou pensar em ti. Intensamente: até que as horas me doam a pele, e o movimento dos dias passe como aves que perdem o sentido do voo – até que tudo o que me rodeia tome a forma do teu corpo. E em mim circules – quando estendo a mão por dentro da noite e te acordo, no fogo dos meus olhos.
No fim do sono existe um vulcão.
De repente a manhã. A bruma. Um pássaro. As coisas que me rodeiam com os seus segredos – mas as coisas, sabe-se lá, só existem porque as palavras dizem que existem. E os segredos das coisas estão em mim – e não nas coisas.
Quando subo pela haste da manhã, encontro uma cidade de cristal. Trouxeste-ma tu, na dádiva do corpo. E se conseguisse tocar-te com a respiração, ouvia-te dizer:
- É na desolação dos dias que o meu olhar segrega o mel com que te alimentas.
Penso no que te vou deixar: nomes de flores e de estrelas para refazeres os jardins e as constelações, e o peso etéreo da minha morte – para continuares a celebrar a vida.
Insónia. Noite fria, repleta de medos. Noite sem fim. Nada. Levanto-me e abro a janela. Respiro fundo. Um fio de sol embate na garrafa de gin abandonada ao lado da cama. Ponho os óculos e o dia torna-se nítido, focado, limpo, e cheira a violetas…
Às vezes, tenho a impressão de ter perdido a exactidão dos gestos e das palavras. Estive tempo a mais sozinho – reaprendo, com dificuldade, a ser cúmplice, amigo, amante.
Não me desagrada a ideia de viver num farol abandonado. Não me desagrada a ideia que a luz se apague. Não me desagrada pensar que posso perder a lucidez. Por isso bebo.
Beber ajuda a cicatrizar o olhar ferido da noite. Isola-nos do mundo, acende-nos os gestos, antes de nos perdermos de bar em bar.
Amantes e embriagados. Destinados à chuva das ruas, às cidades que ardem junto ao mar, ao silêncio azul das manhãs. - Aí vem o 28 dos Prazeres... e um táxi. - Não me abandones, fica... E o vinte e oito passa, e passa o táxi, enquanto olhamos A Dança de Matisse na capa dum livro.
Vamos pela manhã que se ergue, suja, enevoada – onde as palavras que digo se confundem com o teu sorriso. E os semáforos mudam de cor, inutilmente.
Rua da Rosa, Travessa da Espera, Calçada do Combro. Silêncio sobre silêncio. A vida suspensa no estremecer de um abraço.
- Até logo. Se te lembrares de mim, telefona.
Fecho por fim, as pálpebras. O teu rosto sobrepõe-se à imagem do meu rosto. A tua mão esconde-se na imagem da minha mão. E no espelho já não há imagens, nem corpos, nem mar...
Logo à noite, outra vez o olhar, os corpos, a chuva, o sono, a fuga, a alma, o dia, dos dias... o regresso. O telefone, e Lisboa a sussurrar no vento da tua ausência.
A vida é sacana. Sobretudo não é aquilo que nos disseram que era. Por vezes, quando nos sentimos a morrer, vemos como é disparatado saber que tudo vai acabar. Precisamente quando tínhamos descoberto alguém com quem podíamos falar. Passamos a vida numa espécie de silêncio, numa mudez terrível que se quebra, ainda que raramente, diante de certas coisas que nos contaram e nos deslumbraram.
Mas é tarde. As coisas que nos deslumbraram eram efémeras, breves. E não se pode voltar atrás.
Tenho um amigo que disse:
- Sabes, a verdade nunca acaba.
Mas o que será a verdade quando estivermos mortos?
Penso no lugar secreto do Caos e da Ordem que se erguem, subitamente, diante daquele que ama, e escreve.
Um dia, disseste:
- A paixão serve para te mostrar os fogos da noite.
Acreditei no que me dizias, mas já não consigo dormir, só morrer. O teu sorriso colou-se-me à boca.
Passo os dias a espiar as paisagens diluídas na memória que tenho de ti. Atravesso continentes que se transformam em minúsculas dores, pequenos territórios que cabem no fundo duma algibeira, ou em meia dúzia de palavras.
Lembro-me que numa viagem de comboio podemos encontrar gente cúmplice do silêncio – mas dificilmente um amigo de olhos cor-de-amêndoa que te diga:
- O teu olhar é belo.
Espantado, respondes:
- O meu olhar só é belo porque se deixou aprisionar pelo teu. Nesse lugar profundo onde nos cruzamos e o mundo faz sentido. E quando a distância nos separar, e Lisboa for apenas uma impressão vaga de mal-estar, uma parte de mim pertencer-te-á.
Mentir é necessário. É a melhor maneira de esconder o que há de doloroso na verdade.
Repara, através dos meus olhos descobrirás como é a grande tristeza do mundo. Apenas isso. E, quando aqui não estiveres, espetarei todas as facas que encontrar nas paredes febris da noite.
Talvez sangre dos pulsos. Talvez te escreva. Talvez...
Olho atentamente as fissuras do tecto. Desloco-me através delas, alcanço a noite. O teu rosto, de quando em quando, pousa na minha solidão. Há vinte anos que a vida se apagou nas linhas da mão, e os jardins da cidade permaneceram, todo esse tempo, envoltos na bruma. O Tejo não deixou o tempo correr.
Mas um dia, talvez agora, abrirei as mãos no escuro do quarto, e o teu rosto incendiar-se-á.
As mãos queimadas, memória da tua passagem.
Por isso te escrevo, com esta luz encostada à boca. E espalho a cinza destas palavras pelo escuro da noite. Perder-te, levar-me-ia ao zumbido ensanguentado duma bala. A paixão, a nossa, foi construída com a lentidão das obras-primas. E nela não há equívocos, nem erros. O teu rosto é perfeito e intenso – brilha, assim que o nomeio ou toco: sinal de vida, estremecer do mundo na melancolia das mãos.
Assim te raptei uma noite – com ansiedade e susto. E assim te mantenho vivo, e amo, dentro e fora do poema. Hoje, tudo me parece novo e antigo, em simultâneo, como se já soubesse que havias de chegar e mudar-me a vida, o rumo dela, e depois partir.
Lá fora chove. Chove sem parar. E Lisboa parece encolher-se dentro do teu sono.
Al Berto
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