terça-feira, 22 de novembro de 2011

Um amor feliz



pj harvey | oh my lover

Tola supersticão. Infundado receio. É já sorrindo que transpõe os últimos metros que nos separam; é sempre sorrindo, e sem as prudências habituais, que logo me beija, encostando a cabeça ao meu ombro, antes ainda de eu fechar a porta. Em seguida, procurando os meus olhos, com a expressão de quem deseja sentir-se perdoada de não sei que falta, quase soletra as seguintes palavras:
Olhe que eu não podia fazer outra coisa.
Imediatamente percebo que se refere ao nosso frustrado encontro de anteontem, no território dos ameríndios:
Claro que não. Nem eu. Teve de ser assim.
Afago-lhe os cabelos, depois a testa; e beijo-lhe, entre as sobrancelhas, as duas rugazinhas preocupadas que só agora se desvanecem. Entretanto, pela habitual pressão de cada um dos calcanhares sobre o outro, já se libertou dos seus sapatos. A contrastar com esta desenvoltura, a hesitacãoo com que me pede:
Pode arranjar-me um copo de água? Mesmo água. Só água. O mais fria possível.
Quando volto lá de dentro, com dois copos numa das mãos e meia garrafa de água na outra, encontro-a aqui em pé, de costas para o divã, inteiramente despida. Sorrindo sempre, ei-la que exclama:
Ah! Veio tão depressa... Queria fazer-lhe uma surpresa.
Só neste instante reparo que lhe pende da mão esquerda uma comprida e branca peça de roupa, quase etérea de tão rendada: é uma camisa de noite, que logo enfia pela cabeça e logo toda a modela desde o alto dos seios até aos tornozelos. Pela minha parte acabei de lançar água num dos copos, a seguir no outro (também estou com sede) e de colocar os dois em cima da cómoda. Mas nem tenho tempo para me desembaraçar da garrafa, tão rápido é o movimento com que a Y, aproximando-se, colando-se a mim, ao longo do meu corpo se deixa agora deslizar; e, meio de joelhos, meio sentada - melhor dizendo apoiada de lado sobre as pernas flectidas debaixo dos quadris -, pega-me de súbito na única mão que tenho livre e leva-a à boca, não propriamente para a beijar, antes para a premir, muito de leve, de encontro aos seus lábios. começa então a falar, em voz sempre baixa mas distintamente, como se através da minha mão se quisesse fazer ouvir:
Tenho sido muito estúpida, não tenho? Très sotte, eu sei. Às vezes não entendo, não consigo entender o que se passa comigo. Quando estou longe de si... tanta coisa, tantas coisas para lhe dizer! Mas não há tempo, nunca há tempo. E, sem tomar fôlego, como se tudo se encadeasse: Sabe que vim hoje muito cedo para Lisboa? Nem foi no meu carro. Não pegava. Desisti logo. O meu marido estava também para sair, aproveitei e vim com ele até à fábrica. Depois, de táxi (chamaram de lá um táxi), corri umas poucas de boutiques, primeiro no Bairro Azul, a seguir ali para os lados da Rua Castilho, outra vez no Bairro Azul. Mas não queria aparecer, não podia aparecer, sem trazer hoje esta camisa de noite.
Já pousei a garrafa sobre o tampo da cómoda. Enfio os dedos dessa mão, que finalmente me ficou livre, por entre os seus cabelos, vivos, revoltos, mais encrespados do que é costume.
Há-de pensar que sou doida... Não tem importância. Não é isso que tem importância. Respirando fundo: Esta camisa... Não era bem esta camisa que eu queria. Mas vai aqui ficar, vou aqui deixá-la. Quero-a estrear consigo, ao pé de si. Quero dormir muitas vezes com ela. Ao seu lado. Aqui. Por enquanto aqui. E sorvendo novo gole de ar: Tem que me dar tempo. O que você quer é igual ao que eu quero. Mas não é fácil. Não pode ser assim depressa como nós queremos.
Sem saber como, já estou também sentado no chão - ou de joelhos - ao lado da Y. E é com os olhos bem fixos nos meus, imensamente junto dos meus, mas falando sempre como os lábios encostados à minha mão, que ainda acrescenta:
Outro dia... sabe? O que me custou, o que me desorientou... foi ter-me dito aquilo como um modo so angry. Parecia que me estava a dar um castigo. Eu sei que era o contrário. Mas parecia um castigo.
A poltrona, o espelho. A camisa de noite retirada à pressa, depois novamente vestida; mais tarde, outra vez ainda abandonada como um trapo inútil; por fim dobrada com todo o cuidado, arrumada com todo o cuidado na segunda gaveta aí da cómoda.
Entretanto, o divã: a coberta arredada, os lençóis desfeitos. Fruta e água, água e fruta; apenas fruta, apenas água, alternando ao longo de todo o dia. E, cerca das seis da tarde, a tarefa já um tanto sonâmbula, mas partilhada com gosto, de esticar os lençóis, de prender os lençóis, de repor a coberta, de lavar lá dentro pratos e copos, de deixar tudo numa aparência de ordem - como se afinal nem precisássemos da Floripes. Uma espécie de ensaio; talvez, para a nós próprios provarmos que seremos capazes, se for caso disso, de uma vida mais simples, de prescindirmos até de certos auxílios ou de certas facilidades de que dispomos.

David Mourão-Ferreira

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