quarta-feira, 31 de agosto de 2011
Luz indecisa
tom waits | hold on
O gesto mais simples,
capaz de ordenar tudo,
foi o que não fizemos.
José Mário Silva
sexta-feira, 26 de agosto de 2011
O que é humano é terrível
ólöf arnalds | surrender
Era uma vez um lugar com um pequeno inferno e um pequeno paraíso, e as pessoas andavam de um lado para outro, e encontravam-nos, a eles, ao inferno e ao paraíso, e tomavam-nos como seus, e eles eram seus de verdade. As pessoas eram pequenas, mas faziam muito ruído. E diziam: é o meu inferno, é o meu paraíso. E não devemos malquerer às mitologias assim, porque são das pessoas, e neste assunto de pessoas, amá-las é que é bom. E então a gente ama as mitologias delas. À parte isso o lugar era execrável. As pessoas chiavam como ratos, e pegavam nas coisas e largavam-nas, e pegavam umas nas outras e largavam-se. Diziam: boa tarde, boa noite. E agarravam-se, e iam para a cama umas com as outras, e acordavam. Às vezes acordavam no meio da noite e agarravam-se freneticamente. Tenho medo – diziam. E depois amavam-se depressa e lavavam-se, e diziam: boa noite, boa noite. Isto era uma parte da vida delas, e era uma das regiões (comovedoras) da sua humanidade, e o que é humano é terrível e possui uma espécie de palpitante e ambígua beleza.
Herberto Helder
quarta-feira, 24 de agosto de 2011
Origem dos sonhos esquecidos
low | especially me
Entre a bicicleta e a laranja
vai a distância de uma camisa branca
Entre o pássaro e a bandeira
vai a distância dum relógio solar
Entre a janela e o canto do lobo
vai a distância dum lago desesperado
Entre mim e a bola de bilhar
vai a distância dum sexo fulgurante
Qualquer pedaço de floresta ou tempestade
pode ser a distância
entre os teus braços fechados em si mesmos
e a noite encontrada para além do grito das panteras
Qualquer grito de pantera
pode ser a distância
entre os teus passos
e o caminho em que eles se desfazem lentamente
Qualquer caminho
pode ser a distância
entre tu e eu
Qualquer distância
entre tu e eu
é a única e magnífica existência
do nosso amor que se devora sorrindo
Mário-Henrique Leiria
domingo, 14 de agosto de 2011
Straight through my heart
antony & the johnsons | fistful of love
Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo
Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.
Sophia de Mello Breyner Andresen
quarta-feira, 10 de agosto de 2011
Here I stand
leonard cohen | i'm your man
I almost went to bed
without remembering
the four white violets
I put in the button-hole
of your green sweater
and how I kissed you then
and you kissed me
shy as though I'd
never been your lover
Leonard Cohen
quinta-feira, 4 de agosto de 2011
Heaven is a place on earth with you
lana del rey | video games
O contacto do corpo dele - disse Constance.
- É isso mesmo. O contacto do corpo dele. Ainda hoje não esqueci, e nunca esquecerei. Se há um céu, ele estará lá, e deitar-se-á a meu lado para eu poder dormir. (...) O contacto do corpo dele. Porque os laços do amor são difíceis de desatar.
- É terrível ter um homem nas veias - comentou Constance.
- É isso que faz sofrer muito. (...) Mas tudo quer separar um homem e uma mulher quando eles vivem unidos.
- Fisicamente unidos.
- Exactamente. Há pessoas que têm um coração de pedra. (...)
Dentro daquela mulher ardia subitamente um estranho ódio.
- Mas pode durar assim tanto tempo a recordação de um contacto? - perguntou Constance - A ponto de perdurar ainda?
- Oh, Lady Chaterley, mas que outra coisa é que pode perdurar? Os filhos crescem e vão-se embora. Mas o homem é diferente! E até isso os outros querem matar dentro de nós, a lembrança desse contacto. Até os filhos. Se ele não tivesse morrido, talvez até nos separássemos um dia, quem pode saber! Mas o sentimento é diferente. O melhor é não nos prendermos. Mas quando vejo uma mulher que nunca foi aquecida por um homem, tenho pena dela, por melhor que se vista e melhor vida que tenha, parece-me um pobre mocho. Não, nada me fará mudar de opininão. Não me importo nada com o que pensem as outras pessoas.
D. H. Lawrence
segunda-feira, 1 de agosto de 2011
Eu sou a ferida e tu és o deserto
live | i walk the line
abraço o teu rosto transparente com as duas mãos que
tenho, coração ferida. és de água e dos olhos escorres-me
como eu. de olhos abertos, marítimos de luz.
oiço a dor no fundo dos teus gestos. um sereno rio
quente
viajamos para dentro um do outro, para onde não
queremos ser nus, e mergulhamos no tempo cortado.
abraço o teu rosto quando tinhas oitos anos e muitos
Invernos crucificados no segredo, as paisagens rasgadas, a
fonte da vida gelada, e viajamos dentro das nossas mãos.
penetramos o silêncio um do outro. nus, magoados de
morte, na solidão primeira.
o teu rosto, disforme de sombras, e eu misturando o
meu rosto nele,
fazendo o meu rosto no teu rosto, sulco a sulco. corre a
água vermelha nos olhos abertos, marítimos de luz.
deixa-me porque sou eu a morrer
e as mãos tocam o silêncio gritante a ferida-tudo, a
solidão do corte.
recebe o meu corpo, quero apenas a tua morte inteira
beijo os teus desertos de sangue um a um, a imagem da
pedra feita vida jorrando, vermelha, tu és o meu espaço e o
meu tempo.
eu sou a ferida e tu és o deserto
estou de olhos abertos pelo sono dos dias fora, pelas
manhãs dentro, pelo golpe vivo.
crucificados um no outro, rebentando fontes por onde
morríamos.
Pedro Sena-Lino
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