É assim: tudo começa com palavras atiradas à parede, à toa, palavras que fazem ricochete no peito, e magoam, todos os dias mais um bocadinho, até o coração mirrar definitivamente. Depois vem a indiferença - ou então a vontade de ignorar a raiva quando um batalhão de sentimentos nos invade o espírito, mesmo quando nos sentimos invisíveis a quem passa. Seria fácil ultrapassar isto se um cordão umbilical nos ligasse a todos, se a família estivesse acima dos caprichos de alguém que não pode ser mãe, mas é amiga, é mulher. E o que é a família para alguém que só chegou a meio da vida, que só conseguiu chegar a meio do jogo? Seria natural se o choro não cobrisse a casa todas as manhãs, ao levantar, seria simples se educar fosse só distribuir rebuçados e cantar, seria claro se o respeito se construísse a partir de dentro, sem culpas ou medo de dizer o que não é permitido porque o sangue não é nosso. Seria óbvio se as palavras feias apenas provocassem comichão, sem grandes danos. Mas ainda não. Logo a seguir aproxima-se a mágoa, vem mostrar que o corpo está preso ao que não existe; pede um filho. Baixinho, para que ninguém ouça. Para aprender o que não se sabe, para saber aconchegar, dar conselhos, para ouvir, para rir e falar e correr e tratar, para se ser noutra pessoa, para se ser finalmente o que não se sabe ser nos outros. Mais feliz, mais felizes, todos. Mas não há surpresas. A carta continua fora do baralho, sem saber muito bem como voltar a jogar.