É assim: tudo começa com palavras atiradas à parede, à toa, palavras que fazem ricochete no peito, e magoam, todos os dias mais um bocadinho, até o coração mirrar definitivamente. Depois vem a indiferença - ou então a vontade de ignorar a raiva quando um batalhão de sentimentos nos invade o espírito, mesmo quando nos sentimos invisíveis a quem passa. Seria fácil ultrapassar isto se um cordão umbilical nos ligasse a todos, se a família estivesse acima dos caprichos de alguém que não pode ser mãe, mas é amiga, é mulher. E o que é a família para alguém que só chegou a meio da vida, que só conseguiu chegar a meio do jogo? Seria natural se o choro não cobrisse a casa todas as manhãs, ao levantar, seria simples se educar fosse só distribuir rebuçados e cantar, seria claro se o respeito se construísse a partir de dentro, sem culpas ou medo de dizer o que não é permitido porque o sangue não é nosso. Seria óbvio se as palavras feias apenas provocassem comichão, sem grandes danos. Mas ainda não. Logo a seguir aproxima-se a mágoa, vem mostrar que o corpo está preso ao que não existe; pede um filho. Baixinho, para que ninguém ouça. Para aprender o que não se sabe, para saber aconchegar, dar conselhos, para ouvir, para rir e falar e correr e tratar, para se ser noutra pessoa, para se ser finalmente o que não se sabe ser nos outros. Mais feliz, mais felizes, todos. Mas não há surpresas. A carta continua fora do baralho, sem saber muito bem como voltar a jogar.
3 comentários:
Game Over
Algumas pessoas quando escrevem deixam-me sem palavras...
talvez seja por isso que não escrevo muitas vezes...
As cartas não ficam fora dos baralhos, porque os baralhos não existem sem cartas. Pode ser que um mágico ou feiticeiro retire uma carta, a coloque fora, intencionalmente ou por descuido. Mas sempre a carta volta para um baralho, para se encontrar, se misturar e aparecer de novo em todo o seu esplendor, deixando todos espantados. Como foi possível uma carta marcada, que tinha sido dobrada pelas agruras da vida, possa agora aparecer imaculada com todo o seu brilho. Esse é o mistério, o truque de magia que liberta o coração de todas as toneladas de pedras que o soterraram. Assim esse coração grande, somente mirrado pelo peso que tem em cima voltará a bater.
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