procurar uma coisa
é sempre encontrar outra.
assim, para achar algo,
há que procurar o que não é.
procurar o pássaro para encontrar a rosa,
procurar o amor para achar o exílio,
procurar o nada para descobrir um homem,
ir para trás para ir para a frente.
a chave do caminho,
mais do que nas suas bifurcações,
seu suspeito começo
ou seu duvidoso final,
está no cáustico humor
do seu duplo sentido.
Venho dormir junto de ti
e o meu corpo é uma coisa diferente
do que se vê ou toca ou sente;
é, fora de mim, essa coluna de ar onde respiro,
olhos que beijam o teu corpo exacto,
as muitas mãos que dobram o teu rosto.
Um deus que dorme, um deus que dança, e mais
que um mero deus, o breve amor do tempo.
o Sol entra aqui devagarinho
com medo de ficar cansado.
guarda, no bolso,
para o regresso da noite,
sementes de luz enxuta
e um trevo de dar sorte.
na segunda casa, à esquerda,
um homem morreu muito novo. vou-me embora dentro do fim do dia,
deixou escrito, o amanhecer está puído, de tão gasto.
encontraram cicuta num canto de moldura,
e um nome de mulher.
o vento, quando cá chega,
é um sopro de labirinto,
qualquer coisa de tenaz
que aperta o peito dos muros.
os olhos dos meninos estão caídos
à espera de um pássaro que os levante,
desenham, a cinza, o horizonte
num pedaço de ardósia muito antigo.
e a vida vai partindo cada dia
como se não doesse ao coração
cada bago de silêncio não dar vinho,
cada lágrima de tempo
não dar pão.
quem nos pôs aqui, minha irmã?
eu fiquei de costas, como sempre.
Amo-te por sobrancelhas, por cabelos, debato-te em corredores
branquíssimos onde se jogam as fontes da luz,
Discuto-te a cada nome, arranco-te com delicadezas de cicatriz,
vou pondo no teu cabelo cinzas de relâmpago
e fitas que dormiam na chuva.
Não quero que tenhas uma forma, que sejas
precisamente o que vem por trás da tua mão,
porque a água, considera a água, e os leões
quando se dissolvem no açúcar da fábula,
e os gestos, essa arquitectura do nada,
acendendo as lâmpadas a meio do encontro.
Tudo amanhã é a ardósia onde te invento e desenho.
pronto a apagar-te, assim não és, nem tampouco
com esse cabelo liso, esse sorriso.
Procuro a tua súmula, o bordo da taça onde o vinho
é também a lua e o espelho,
procuro essa linha que faz tremer um homem
numa galeria de museu.
Amei-te muito, sim, amei-te desde o princípio do tempo, desde que o mundo começou a ser mundo: revelação total, febre secreta a iluminar o corpo, a abrir caminhos que mais ninguém conhecera antes de nós, a acender-te no sexo mais do que o sexo, a percorrer em ti, pela primeira vez, todos os corpos de todas as mulheres que desejara até esse momento. Todas as raparigas que nunca possuíra, todas subitamente concentradas em ti, nesse amor fora do tempo e do espaço, como se só na tua pele a minha fosse lume. Quando é assim, não vale a pena perguntar nada ou iludir o destino com as armadilhas da razão: estavas ali e tudo se explicava, numa lógica cega cuja certeza não admitia hesitações. Por isso nos pareceu tão natural esse amor infinitamente maior do que todos os pequenos sonhos que a sociedade nos ensina a cultivar, para que todos os afectos se meçam por uma escala humana. A nossa paixão não se comportava assim, sempre foi muito mais do que humana, fazia-nos atravessar o vazio do mundo como se cada um dos nossos passos pressentisse o abismo e ao mesmo tempo o ignorasse. Foi há sete anos que nos apaixonámos, unidos por um mistério sem medida real, fieis a essa voz omnisciente que nos falava, viciados num oxigénio que respirávamos um do outro para nos salvar a vida. Respiração boca a boca, ar incandescente. Como se fosse inesgotável e nos invadisse a boca, a garganta, os pulmões cheios de sol, nas madrugadas que passávamos dentro do carro, um com o outro e um no outro, cada noite mais perto do nosso infinito. Foi há sete anos, meu amor.
Às vezes o Inverno muda de parecer
e começa a nevar,
neva espessamente, em desespero, como se temesse
não viver até o dia de amanhã.
Nestes casos é melhor desligar o telefone, a campainha da porta,
pôr vinho a ferver em cima do fogão,
folhear cartas antigas
e olhar para trás, também, para a minha vida,
como se ela não tivesse acontecido.
Como se não me tivesse olhado o canhão, nem olhos lascivos,
como mãos surradas, não se tivessem alongado pela minha mão;
e tudo que fosse política, amor, dobre de sinos,
me esperasse de novo num horizonte de oceano.
Nestes casos o melhor é imaginar
que ainda posso chorar pela minha cabeça perdida,
o vento atrai os lilases para cima
de camas, meios-corpos e almofadas desgrenhadas,
e no juízo final terrestre
posso estar de pé ao lado de bons companheiros
em camisa macia e casaco leve
além de fumo, tascas, cemitérios,
fixando o olhar nos olhos dum país a perverter-se
sublimemente,
na minha cabeça há memória de neve,
neve, neve como se o reboco duma catedral
tombasse silenciosamente.
Usámos a dois: estações do ano, livros e uma música.
As chaves, as taças de chá, o cesto do pão, lençóis de
linho e uma cama.
Um enxoval de palavras, de gestos, trazidos,
utilizados, gastos.
Cumprimos o regulamento de um prédio. Dissemos.
Fizemos. E estendemos sempre a mão.
Apaixonei-me por Invernos, por um septeto vienense e
por Verões.
Por mapas, por um ninho de montanha, uma praia e uma
cama.
Ritualizei datas, declarei promessas irrevogáveis,
idolatrei o indefinido e senti devoção perante um nada,
( - o jornal dobrado, a cinza fria, o papel com um
apontamento)
sem temores religiosos, pois a igreja era esta cama.
De olhar o mar nasceu a minha pintura inesgotável.
Da varanda podia saudar os povos, meus vizinhos.
Ao fogo da lareira, em segurança, o meu cabelo tinha a
sua cor mais intensa.
A campainha da porta era o alarme da minha alegria.
vai certamente estranhar esta quase interminável carta
pai
há muito que o silêncio se fez entre nós
o pai com os seus trabalhos por aí onde o tempo custa a passar
e eu pobre de mim
tão aflito me sinto com a velocidade desse mesmo tempo
a cidade é veloz
não sei se o pai poderá compreender esta velocidade
aqui tudo se tornou dia após dia mais doloroso
minha mulher anda atarefadíssima com o arranjo da casa
parece que mais nada existe para ela
eu sempre na rua por aí
porque não consigo mais suportar aqueles móveis
onde o pó não chega a pousar
não consigo suportar aquela barulheira de electrodomésticos
continuamente a funcionarem
já não consigo suportar a minha mulher
saio de casa logo de manhã
muitas vezes não me apetece ali voltar
deambulo pela cidade e gasto tempo de café em café
perco-me
noite dentro caminho sem direcção precisa
sem saber para onde vou atravesso a cidade
à procura não sei de quê
o corpo esvaziou-se lentamente e
com o passar do tempo sei agora
este casamento foi um erro
estou terrivelmente só
talvez seja por isso que me lembrei de lhe escrever
pai
decidi partir
não me pergunte para onde nem porquê
partir é o que ressoa na minha cabeça
viajar sem fim e jamais voltar
também é inútil perguntar-me as razões de tudo abandonar
este conforto enjoa-me esta vida dá-me vertigens e diarreia
de resto duvido que existam razões de peso
tenho a certeza de que seria capaz de suportar minha mulher
se ainda a amasse
partilharia com ela a loucura que adquiriu pela casa
a semanal mudança de lugar dos móveis
e mais estranho ainda
quando põe a máquina da roupa a trabalhar sem nada lá dentro
diz que adora aquele insuportável ronronar de aço
que lhe faz muita companhia
enfim
se eu ainda a amasse talvez
mas é certo que arranjei outras compensações
a amizade segura de um amigo
talvez seja melhor não revelar grande coisa sobre este assunto
poderia chocar o pai por demasiado íntimo e delicado
duvido mesmo que conseguisse entender a amizade como eu a entendo
que quer
sempre gostei da travessia das noites e das pessoas
e de beber
muitas vezes nem sei bem quem são as pessoas com quem falo
o pai dir-me-á que tudo isto são simples fugas
é possível
desde que me conheço que me fujo
amo essas fugas esses pedaços doutras vidas cruzando-se
com pedaços sombrios da minha
não leve a mal estes desvarios
no fundo teria sido melhor para mim ficar aí
onde o tempo parece não avançar e a terra é fértil
provavelmente hoje seria um desses pastores que meditam
sobre as fases da lua mesmo antes delas se iniciarem
é possível que hoje fosse um operário exemplar
trabalharia sem querer me pôr a questão de que há outro mundo
por descobrir para lá do incessante roncar surdo das máquinas
tudo explodiu dentro de mim e não sei como dizer-lho
vou largar tudo
a mulher o trabalho a cidade onde vivo a casa de que não gosto
a cidade apagou em mim muitos desejos
a única coisa que ainda faço com prazer é vagabundear
o que não é muito
mas sinto-me livre e feliz e anónimo
olho a vida como se o mundo desabasse dentro de instantes
quanto ao emprego não se preocupe
vou escrever ao meu patrão para me despedir
não sei o que me espera longe daqui
nem onde pararei de viajar
sei que devo partir de todos os lugares onde chegar
se é que alguma vez vou chegar a algum lugar
fascinam-me sobretudo as cidades costeiras
nelas poderei embarcar para outras cidades
ou ficar no cais a ver os barcos afastarem-se
e quedar-me silencioso horas a fio
olhando-os desaparecer
com o simples desejo de ir com eles
mas ficar
ficar um dia mais para que o desejo de partir se torne tão forte
insustentável
e me apeteça morrer em cada porto de partida e de chegada
nesta incerteza viverei o resto dos meus dias
atravessando mares devassando corpos e noites
que de mastro em mastro se tornam peganhentas
indecisas
digo isto porque ultimamente tenho sonhado muito
facto extraordinário que já não me acontecia há muito tempo
nesses sonhos surgem-me grandes planos de rostos
antigas topografias de corpos
desenhados minuciosamente no espaço como mapas pormenorizados
dalguma costa pedregosa
paisagens exuberantes imagens a preto e branco
semelhantes a fotografias ou a visões
feras que silentemente passeiam pela praia
e parecem não ter peso
imensos mares que não consigo localizar nos mapas
cheguei mesmo a comprar uma quantidade incrível de mapas
passei noites a estudá-los
sentia a necessidade absoluta de saber onde encontraria
aquelas paisagens de rostos e de feras com pêlo ruivo
assim percorri estradas e arquipélagos
percorri cidades sem me deter para pernoitar
imaginei sedes e fomes terríveis doenças
e nada consegui saber de mim mesmo
nem onde se encontrava meu corpo
por vezes acordava em sobressalto
olhava minha mulher dormir
perscrutava seu corpo moreno enrolado no lençol
avistava praias espreguiçadas pela penumbra do quarto
deve ter sido uma das últimas vezes que a amei
mas só mais tarde comecei a ter visões
ficava sentado na cama estático os olhos em alvo
apercebia pequenas formas geométricas flutuantes
delicados cristais movimentando-se aderiam aos dedos
sementes de estrelas rebentavam deixando escorrer resina
claridades pelas paredes abauladas
o ar ficava incandescente
podia vê-lo e senti-lo cortante sobre o peito
a princípio assustei-me
mas com o tempo habituei-me
como me habituei a ver no escuro a desolação de barcos naufragados
e a viver sem corpo sem sombra e sem reflexo
minha mulher achou melhor internarem-me
mas nunca me foi visitar
nem uma só vez enquanto estive atado a uma cama
precisava tanto dela
ou de alguém que me tocasse
para me certificar que a vida ainda latejava no fundo do corpo
não se assuste pai
tudo isto passou e a morte parece não querer nada comigo
de resto
a vida também não
talvez não devesse falar-lhe nestas coisas
que direito terei eu de o inquietar? de o perturbar?
nem sequer lhe devia escrever
na verdade fomo-nos afastando tanto nos últimos anos
o pai já deve ter os cabelos todos brancos
pouco ou nada tínhamos a dizer um ao outro
o sol a chuva o mar e a tempestade eram-lhe indiferentes
o cheiro quase doce da terra molhada
não sei se o pai consegue imaginar o que é uma cidade
que respiração ferida de cimento se exala dela
um coração de gasolina e de néon palpita das avenidas
aos subúrbios de lata e de estrumeiras
que cicatrizes sujas de lágrimas se abrem ao cair da noite
e tudo brilha e tudo parece viver por trás do que já está morto
entradas de cinemas montras jornais luminosos umbrais de luz
poderá imaginar tanta luz em plena noite?
o espaço rasgado por passos rostos barulhos sibilantes
sirenes gritos aflições pequenos suicídios
ignoro se o céu imenso daí não o acharia estreito aqui
percebe agora como é que alguém se pode perder na noite?
não sei
noutros tempos é possível que tivesse vivido como aventureiro
como esses homens tristes tisnados pelo mar
viajavam
levando mercadorias e mensagens iam de porto em porto
enriquecendo fornicando rezando e largando enteados e sífilis
quem sabe se não sou habitado pela sombra dum país qualquer
muito antigo e distante
ou apenas pelo eco duma língua que estala no coração
uma voz um rosto murmurado um presságio
então comecei por atravessar o rio nos cacilheiros
de dia e de noite sem me aperceber que o tempo deste rio
já o haviam pintado em retábulos magníficos
e o rio só existia quando sonhava
como se isto resolvesse alguma coisa ia e vinha
sem nunca ter a sensação de quem chega ou de quem parte
sentia-me como que a boiar num tempo remoto
e de mais longe ainda que o meu próprio corpo podia lembrar
um cheiro inquietante a sal devassava-me a intimidade do sonho
corroía-me a memória
pensei depois ao olhar as fotografias
as poucas onde me conseguia reconhecer
que resolveria esta angustiante procura
julguei que se pudesse recuar ou avançar no tempo
ser jovem e velho e velho e jovem simultaneamente
talvez pudesse reencontrar-me de novo ou insinuar-me
no corpo fotografado
encontraria o sorriso simples da infância que me revelaria o nome
mas foi impossível
porque aquele rapaz que me sorria e me olhava
com seus olhos em papel sépia não era eu
e tive medo
passava as noites a embebedar-me
turvava a memória de tudo e de todos
era-me doloroso não conseguir corrigir o passado
a viagem que de manhã inicio é um sobejo da vida
ignoro se irei parar a um desses países cuja linguagem desconheço
e os costumes do amor me são estranhos
não sei se haverá regresso
mas não esquecerei a sua colecção de selos
quando o pai receber um postal dum determinado lugar
é sinal de que já nesse lugar não estarei
será inútil tentar saber o meu paradeiro
pouco importa se continuo vivo
se calhar esta viagem não passa de pura imaginação
tem de me desculpar esta última carta
de resto pouco disse do que inicialmente lhe queria dizer
paciência pai
não nos veremos mais e eu tenho pena de nunca ter tocado
os seus cabelos brancos
mas de qualquer maneira já nos víamos muito pouco
tanto tempo sem memória nos separou
peço-lhe que queime esta carta
destrua-a
e se a minha mulher lhe escrever ou telefonar
diga que nada sabe do seu filho há muitos anos
é melhor assim
nenhum resíduo nenhum brilho deve assinalar a minha passagem
descalço-me de sombras para chegar a ti
as linhas do meu rosto são claríssimas
nelas não vês o velho, a criança, o adulto
vês apenas o traço comum
que é onde eu procuro a tua mão
na transparência da minha palavra inteira
Não sei para que lado da noite me hei-de virar
onde esconder de ti o rio de fogo das lágrimas
quase a transbordar e acendo mais um cigarro
e falo atabalhoadamente de um futuro qualquer
e suspiro de alívio porque não ouves o que digo
ou se calhar também não sabes onde te esconderes
esperamos que se ilumine o lado certo da noite
é quando se esgotam as palavras e os silêncios
e a minha mão procura a tua que a recebe
e a noite se unifica e todos os rios secam
menos um por onde navegamos
para abolir a noite.