quinta-feira, 29 de março de 2012
You'll be given love
björk | all is full of love
Três fósforos... um a um acesos na noite
O primeiro para ver o teu rosto inteiro
O segundo para ver os teus olhos
O terceiro para ver a tua boca
E toda a escuridão para recordar tudo isso
Apertando-te nos braços
Jacques Prévert
terça-feira, 27 de março de 2012
When i am missing you to death (i hope this song will guide you home)
iron & wine | such great heights
Chama-se amor a isto:
beber horas roubadas,
no receio constante
de que alguém as descubra
(assim se tem cadastro!);
morder com pressa
a polpa dos minutos,
sem lhes sorver o sumo,
sem lhes tirar a casca
(assim se apanham úlceras!);
ter este modo brusco
de engolir os segundos,
como se fossem cápsulas
de qualquer barbitúrico
(assim se morre às vezes!)
O culpado: este cão
que trazemos bem preso,
todo agarrado ao pulso,
e a que chamamos Tempo.
(sempre a ganir de susto.)
David Mourão-Ferreira
domingo, 25 de março de 2012
The first time ever i saw your face
paal flaata | the first time ever i saw your face
lembro-me que tínhamos fome havia três dias
encostada ao mármore da mesa-de-cabeceira dormia a fotografia
e o maço de português suave filtro
a escuridão não era só exterior
conhecíamo-nos pelo tacto e pelo olfacto
tornámo-nos murmurantes
e tu refulges ainda no escuro dos quartos que conhecemos
cruzámos olhares cúmplices
falámos muito não me recordo de quê
e no calor dos corpos crescia o desejo
caminhámos pela cidade
eu metia as mãos nas algibeiras
onde tacteava tudo o que guardara e possuía
um lenço uma caixa de fósforos um bloco de notas
sentia-me feliz por quase nada possuir
a imagem azulada de tuas mãos flutuava diante de mim
gesticulava para me dizer que estávamos vivos
e apaixonados
Al Berto
sexta-feira, 23 de março de 2012
Que o mundo compreendeu, e o dia amanheceu em paz
chico buarque | valsinha
que o meu coração esteja sempre aberto às pequenas
aves que são os segredos da vida
o que quer que cantem é melhor do que conhecer
e se os homens não as ouvem estão velhos
que o meu pensamento caminhe pelo faminto
e destemido e sedento e servil
e mesmo que seja domingo que eu me engane
pois sempre que os homens têm razão não são jovens
e que eu não faça nada de útil
e te ame muito mais do que verdadeiramente
nunca houve ninguém tão louco que não conseguisse
chamar a si todo o céu com um sorriso
e.e.cummings
quinta-feira, 22 de março de 2012
The edges of our love are in the stars?
tindersticks | my oblivion
Do amor às palavras apenas resta costume.
Faz-se rito o mistério e um deus inútil
silencioso visita a paisagem devastada dos nossos sonhos.
Em espelhos a arder olhamos o nosso rosto
e a mão segura uma flor que é de gelo e cinza.
Se nesse entardecer um pássaro cego cantar,
que nos devolverá o seu canto se já a noite aguarda
para arrancar dos nossos olhos a luz última do mundo?
Abelardo Linares
quarta-feira, 21 de março de 2012
De profundis amamus
over the rhine | i want you to be my love
Ontem
às onze
fumaste
um cigarro
encontrei-te
sentado
ficámos para perder
todos os teus eléctricos
os meus
estavam perdidos
por natureza própria
Andámos
dez quilómetros
a pé
ninguém nos viu passar
excepto
claro
os porteiros
é da natureza das coisas
ser-se visto
pelos porteiros
Olha
como só tu sabes olhar
a rua os costumes
O Público
o vinco das tuas calças
está cheio de frio
e há quatro mil pessoas interessadas
nisso
Não faz mal abracem-me
os teus olhos
de extremo a extremo azuis
vai ser assim durante muito tempo
decorrerão muitos séculos antes de nós
mas não te importes
não te importes
muito
nós só temos a ver
com o presente
perfeito
corsários de olhos de gato intransponível
maravilhados maravilhosos únicos
nem pretérito nem futuro tem
o estranho verbo nosso.
Mário Cesariny
Da poesia
lou rhodes | they say
Poesia, s. f.
Raiz de água larga no rosto da noite
Produto de uma pessoa inclinada a antro
Remanso que um riacho faz sob o caule da manhã
Espécie de réstia espantada que sai pelas frinchas de um homem
Designa também a armação de objetos lúdicos com empregos de palavras imagens cores
sons etc. geralmente feitos por crianças pessoas esquisitas loucos e bêbados
Poeta, s. m. e f.
Indivíduo que enxerga semente germinar e engole céu
Espécie de um vazadouro para contradições
Sábia com trevas
Sujeito inviável: aberto aos desentendimentos como um rosto
Sol, s. m.
Quem tira a roupa da manhã e acende o mar
Quem assanha as formigas e os touros
Diz-se que:
se a mulher espiar o seu corpo num ribeiro florescido de sol, sazona
Estar sol: o que a invenção de um verso contém
Árvore, s. f.
Gente que despetala
Possessão de insetos
Aquilo que ensina de chão
diz-se de alguém com resina e falenas
Algumas pessoas em quem o desejo é capaz de irromper
sobre o lábio, como se fosse a raiz de seu canto
Apêndice:
Olho é uma coisa que participa o silêncio dos outros
Coisa é uma pessoa que termina como sílaba
O chão é um ensino.
Manoel de Barros
terça-feira, 20 de março de 2012
Dance on my skin
mi & l'au | dance on my skin
Quem foi que à tua pele conferiu esse papel
de mais que tua pele ser pele da minha pele
David Mourão-Ferreira
segunda-feira, 19 de março de 2012
Pai *
zeca afonso | canção de embalar
Homens que são como lugares mal situados
Homens que são como casas saqueadas
Que são como sítios fora dos mapas
Como pedras fora do chão
Como crianças órfãs
Homens sem fuso horário
Homens agitados sem bússola onde repousem
Homens que são como fronteiras invadidas
Que são como caminhos barricados
Homens que querem passar pelos atalhos sufocados
Homens sulfatados por todos os destinos
Desempregados das suas vidas
Homens que são como a negação das estratégias
Que são como os esconderijos dos contrabandistas
Homens encarcerados abrindo-se com facas
Homens que são como danos irreparáveis
Homens que são sobreviventes vivos
Homens que são sítios desviados
Do lugar
Daniel Faria
quinta-feira, 15 de março de 2012
O amor dito de palavra é açúcar nos ferrolhos da boca
echo & the bunnymen | lips like sugar
Como eu gosto de ti, ninguém o entenderia. Nem a cama esvaída que me obriga a desprender-me do corpo noutras roturas nocturnas e azedas. Nem a solidão taciturna que escorre devagar nos chuviscos flamejantes do amor. Como eu gosto de ti, nem o mundo o aceitaria. As árvores trépidas, os animais ferinos, a cadência dos lagos, mobília sisuda que ganha a morte sobre o couro crestado. Como eu gosto de ti, só a melodia do poente trova. E se a antemanhã sucumbe nas copas das sequóias - ricocheteando como uma bala célere - perfurando como um comboio alucinado - a incerteza dos teus sinais desmancha-se sobre os meus lençóis na loucura do leito. Como eu gosto de ti, só eu sei, de dentro para dentro, como um confim de baús entreabertos às galáxias chamejantes do céu da boca. Como eu gosto de ti, segredando-me da voz o rasto da tua presença, pernoitando-me de corpo fixo e amor esquivo, a temperança das tuas enchentes.
Ao amor que já não ama, lacera-se-lhe o coração em brasa, domam-se-lhe as rédeas no casquilho dos dentes. Um amor temeroso e efémero, porque um coração transita como os frutos de época. Um coice tardio na curva do peito, porque os seus tornozelos não suportam o fardo do corpo que ainda trilha as sendas do amor. O amor dito de palavra é açúcar nos ferrolhos da boca, amor adoçado nas gengivas como um beijo de campânula. Amor que sobra das palavras dorme ao relento de corpo purgado ao vento, escavacando as ervas-beldroegas com as suas garras de leão-persa. Aos olhos de um amor que ainda ama, a infinidade da noite é uma mentira eléctrica serpeando que nem enguia o choro das caldas de Cáspio. Aos meus olhos, o limbo da noite é estonteante e latente, dos olhos às mãos, e do peito à memória, uma âncora no céu-da-boca.
O domador de luas
echo & the bunnymen | the killing moon
estamos encostados a uma roulotte bebemos sangria
conversamos enquanto queimamos a noite
junto ao mar
o vento fresco surpreende-nos com as mãos nervosas
em redor dos copos embaciados a ternura dum olhar
não chega para iludir a embriaguez dos amores imperfeitos
sei que possuis ainda alguma juventude nesse sorriso
eu já só embebedo os lábios viciados pelas palavras
pouco tenho a dizer-te
toco-te no ombro faço promessas e tu ris
enquanto descobrimos no silêncio cúmplice do vinho
que os dedos enlear-se-ão uns nos outros e sobre a pele
treme uma teia de luminoso sal onde a noite cai
sobreviveremos ao desgaste do amor
bebemos mais
para que haja só desejos e não amor entre nós e
o rapaz que tem a mania de espetar uma faca loura
no ombro do mar
La vie est une gare, je vais bientôt partir, je ne dirai pas où.
calei-me
sabendo que me conduzirias até casa pelo caminho da praia
cambaleantes
e enquanto eu não conseguir abrir de novo os olhos
não partirás tenho a certeza
com tua jaula cheia de luas mansas
apaziguadas
Al Berto
quarta-feira, 14 de março de 2012
Brilha
yann tiersen | la valse d'amélie (orchestre)
Uma pequenina luz bruxuleante
não na distância brilhando no extremo da estrada
aqui no meio de nós e a multidão em volta
une toute petite lumière
just a little light
una picolla... em todas as línguas do mundo
uma pequena luz bruxuleante
brilhando incerta mas brilhando
aqui no meio de nós
entre o bafo quente da multidão
a ventania dos cerros e a brisa dos mares
e o sopro azedo dos que a não vêem
só a adivinham e raivosamente assopram.
Uma pequena luz
que vacila exacta
que bruxuleia firme
que não ilumina apenas brilha.
Chamaram-lhe voz ouviram-na e é muda.
Muda como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Brilhando indeflectível.
Silenciosa não crepita
não consome não custa dinheiro.
Não é ela que custa dinheiro.
Não aquece também os que de frio se juntam.
Não ilumina também os rostos que se curvam.
Apenas brilha bruxuleia ondeia
indefectível próxima dourada.
Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.
Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.
Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.
Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha.
Desde sempre ou desde nunca para sempre ou não:
brilha.
Uma pequenina luz bruxuleante e muda
como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Apenas como elas.
Mas brilha.
Não na distância. Aqui
no meio de nós.
Brilha.
Jorge de Sena
segunda-feira, 12 de março de 2012
I let love in
nick cave & the bad seeds | i let love in
era assim:
queres?
queres algo?
queres desejar?
desejas querer?
desejas-me?
desejas querer-me?
queres desejar-me?
queres querer-me?
queres que te deseje?
desejas que te queira?
queres que te queira?
quanto me
queres?
quanto me
desejas?
ah quanto te quero
quando te quero
quando me queres...
Ana Hatherly
domingo, 11 de março de 2012
And my fingertips trembled at the thought of touching you
tindersticks | all the love
Venho dormir junto de ti
e o meu corpo é uma coisa diferente
do que se vê ou toca ou sente;
é, fora de mim, essa coluna de ar onde respiro,
olhos que beijam o teu corpo exacto,
as muitas mãos que dobram o teu rosto.
Um deus que dorme, um deus que dança, e mais
que um mero deus, o breve amor do tempo.
António Franco Alexandre
quinta-feira, 8 de março de 2012
Procuro a ternura súbita
cat power | sea of love
Procuro a ternura súbita,
os olhos ou o sol por nascer do tamanho do mundo,
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque com a forma de um grito de alegria.
Ou a carícia da terra,
a juventude suspensa,
a fugidia voz da água
entre o azul do prado e de um corpo estendido.
Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.
Chamo por ti e o teu nome
ilumina as coisas mais simples:
o pão e a água,
a cama e a mesa,
os pequenos e dóceis animais,
onde também quero que chegue
o meu canto e a manhã de maio.
Um pássaro e um navio são a mesma coisa
quando te procuro de rosto cravado na luz.
Eu sei que há diferenças
mas não quando se ama,
não quando apertamos contra o peito
uma flor ávida de orvalho.
Ter só dedos e dentes é muito triste:
dedos para amortalhar crianças,
dentes para roer a solidão,
enquanto o verão pinta de azul o céu
e o mar é devassado pelas estrelas.
Porém eu procuro-te.
Antes que a morte se aproxime, procuro-te.
Nas ruas, nos barcos, na cama,
com amor, com ódio, ao sol, à chuva,
de noite, de dia, triste, alegre
– procuro-te.
Eugénio de Andrade
quarta-feira, 7 de março de 2012
I lost myself on a cool damp night
jeff buckley | lilac wine
um dia hei-de ser
como espuma absorta
em volta de um coração,
e dele se erguerá
uma onda púrpura,
um amor terrível.
Herberto Helder
Por vezes é tão criminoso não percebermos uma palavra, uma jura, uma alegria
the waterboys | this is the sea
paga-me um café e conto-te
a minha vida
o inverno avançava
nessa tarde em que te ouvi
assaltado por dores
o céu quebrava-se aos disparos
de uma criança muito assustada
que corria
o vento batia-lhe no rosto com violência
a infância inteira
disso me lembro
outra noite cortaste o sono da casa
com frio e medo
apagavas cigarros nas palmas das mãos
e os que te viam choravam
mas tu, não, nunca choraste
por amores que se perdem
os naufrágios são belos
sentimo-nos tão vivos entre as ilhas, acreditas?
E temos saudades desse mar
que derruba primeiro no nosso corpo
tudo o que seremos depois
pago-te um café se me contares
o teu amor
José Tolentino Mendonça
Uma canção para ouvir-te chegar
red house painters | song for a blue guitar
ruas onde o perigo é evidente
braços verdes de práticas ocultas
cadáveres à tona de água
girassóis
e um corpo
um corpo para cortar as lâmpadas do dia
um corpo para descer uma paisagem de aves
para ir de manhã cedo e voltar muito tarde
rodeado de anões e de campos de lilases
um corpo para cobrir a tua ausência
como uma colcha
um talher
um perfume
isto ou o seu contrário, mas de certa maneira hiante
e com muita gente à volta a ver o que é
isto ou uma população de sessenta mil almas devorando almofadas escarlates a caminho do mar
e que chegam, ao crepúsculo,
encostadas aos submarinos
isto ou um torso desalojado de um verso
e cuja morte é o orgulho de todos
ó pálida cidade construída
como uma febre entre dois patamares!
vamos distribuir ao domicílio
terra para encher candelabros
leitos de fumo para amantes erectos
tabuinhas com palavras interditas
– uma mulher para este que está quase a perder o gosto à vida – tome lá –
dois netos para essa velha aí no fim da fila – não temos mais –
saquear o museu dar um diadema ao mundo e depois obrigar a repor no mesmo sítio
e para ti e para mim, assentes num espaço útil,
veneno para entornar nos olhos do gigante
isto ou um rosto um rosto solitário como barco em demanda de vento calmo para a noite
se nós somos areia que se filtre
a um vento débil entre arbustos pintados
se um propósito deve atingir a sua margem como as correntes da terra náufragos e tempestade
se o homem das pensões e das hospedarias levanta a sua fronte de cratera molhada
se na rua o sol brilha como nunca
se por um minuto
vale a pena
esperar
isto ou a alegria igual à simples forma de um pulso
aceso entre a folhagem das mais altas lâmpadas
isto ou a alegria dita o avião de cartas
entrada pela janela saída pelo telhado
ah mas então a pirâmide existe?
ah mas e então a pirâmide diz coisas?
então a pirâmide é o segredo de cada um com o mundo?
sim meu amor a pirâmide existe
a pirâmide diz muitíssimas coisas
a pirâmide é a arte de bailar em silêncio
e em todo o caso
há praças onde esculpir um lírio
zonas subtis de propagação do azul
gestos sem dono barcos sob as flores
uma canção para ouvir-te chegar
Mário Cesariny
terça-feira, 6 de março de 2012
Chega-te para mais perto de mim
death in vegas | dirge
- De que serve, disse Neville, olhar o relógio sobre a lareira? Sim, o tempo passa. E envelhecemos. Mas estar sentado junto de ti, sozinho contigo, em pleno coração de Londres, neste quarto iluminado pelo fogo, é tudo o que posso desejar. O mundo não nos pode dar mais que isto, o mundo saqueado até às mais remotas regiões e onde todas as montanhas foram despojadas de flores. Olha o fogo subindo e descendo pelo dourado fio da cortina. A fruta que ele alcança murcha rapidamente. Faz brilhar a ponta dos teus sapatos e rodeia o teu rosto com um halo de luz, de tal modo que parece o fogo e não o teu rosto. Penso que isto são livros dispostos ao longo das paredes, que isto é uma cortina e que aquilo talvez seja uma poltrona. Mas quando chegas tudo se transforma. Quando chegaste esta manhã as chávenas e os pires mudaram de aspecto. Pousei o jornal na mesa e comentei para mim próprio que as nossas medíocres vidas sem beleza só se revestem de esplendor e adquirem significado quando as vemos com os olhos do amor.
Levantei-me. Tinha acabado de tomar o pequeno-almoço. Tínhamos um dia inteiro à nossa frente e como era um belo dia, terno e sem compromissos, passeámos pelo parque até à margem do rio e depois seguimos ao longo de Strand até St. Paul, onde entrámos numa loja para eu comprar um guarda-chuva, falando sempre e às vezes parando para olhar em volta. Mas a felicidade poderá durar? Perguntei a mim próprio em Trafalgar Square, diante da estátua do leão de ar eterno. Revivi a minha vida passada, cena por cena. Revi a silhueta de um grande olmo e a morte de Percival. Jurei que a minha felicidade haveria de durar para sempre. Mas depois, como de costume, fui assaltado pelas dúvidas. Segurei-te na mão. Em seguida partiste. A descida para a estação do metro foi como uma descida aos infernos. Estávamos separados, afastados por todos estes rostos e o som vazio do vento que soprava nos grandes rochedos desertos. Sentei-me no meu quarto, olhando fixamente em frente. Às cinco da tarde soube que me eras infiel. Peguei no telefone e o ressoar da sua estúpida campainha no teu quarto vazio dilacerou-me o coração. Foi então que a porta se abriu e tu entraste. De todos os nossos encontros foi esse o mais perfeito. Mas estes encontros e separações vão acabar por destruir-nos.
Agora este quarto parece-me o centro do mundo, qualquer coisa arrancada à luz eterna. Lá fora, as linhas curvam-se e intersectam-se, mas aqui dentro envolvem-nos. Estamos no centro. Aqui podemos estar calados e falar sem erguer a voz. Reparaste nisto e naquilo? perguntamos. Ele disse aquilo dando a entender... Ela hesitava. Creio que começou a suspeitar. De qualquer modo ouvi vozes e um soluço na escada ontem à noite. Era a ruptura, o fim das suas relações. Deste modo tecíamos à nossa volta filamentos infinitamente finos, construindo um sistema. Dele fazem parte Platão e Shakespeare, mas também gente obscura, sem a menor importância. Odeio os homens que trazem crucifixos do lado esquerdo do colete. Odeio as cerimónias do culto, as lamentações e a dolorosa imagem de Cristo oscilando ao lado de outra imagem dolorosa e oscilante. Odeio também a pompa, a indiferença e a ênfase sempre deslocada das pessoas que falam à luz dos candelabros, em trajes de cerimónia com estrelas e condecorações. Uma flor numa sebe, um pôr do sol invernal na extensão dos campos, o modo como uma mulher está sentada no autocarro, com as mãos nas ancas e um cesto ao colo – são coisas como essas que gostamos de mostrar um ao outro. É um grande alívio ter alguém a quem podemos chamar a atenção para qualquer coisa. Ou então com que se possa estar em silêncio. Ou com ele seguir as obscuras veredas da mente e penetrar no passado, visitar livros, afastar os seus ramos e colher os frutos. E tu pegas nesses frutos e acha-los belos. E eu acho-te belo a ti, maravilham-me os movimentos descuidados do teu corpo, a tua naturalidade, a energia com que abres as janelas e a habilidade das tuas mãos. Porque, ai de mim, o meu espírito está enfermo, depressa se cansa. Caio como um corredor ao pé da meta, repleto de suor, talvez repelente.
É triste reconhecê-lo, mas eu seria incapaz de cavalgar na Índia, com a cabeça coberta por um capacete, ou de regressar à noite a um bungalow. Não sou capaz de dar, como tu, cambalhotas na ponte de um navio, nem fazer como os rapazes seminus que brincam molhando-se com as mangueiras. Tenho necessidade deste fogo, desta lareira. Tenho necessidade de alguém que se sente junto de mim depois de um longo dia repleto de angústias, atenções, esperas e dúvidas. Depois de tantas zangas e reconciliações, preciso de intimidade, de poder ficar a sós contigo para introduzir ordem nesta confusão. Sim, porque nos meus hábitos sou polido como um gato. Precisamos de nos opor ao desperdício e à fealdade do mundo, às multidões que circulam em torrentes que se espezinham. Devemos deslizar, com precisão e suavidade, colocar estiletes no meio dos romances e atar cuidadosamente maços de cartas com uma fita de seda verde e varrer com uma escova as cinzas da lareira. Nenhum esforço deve ser poupado para afastar de nós o horror da fealdade. Precisamos de ler escritores de virtude e severidade romanas; procuremos a perfeição nas areias do deserto. Sim, mas gosto de deixar escapar a virtude e a severidade dos nobres romanos sob a luz cinzenta dos teus olhos, tal como a erva ondulante, as brisas do Verão, os risos e os gritos dos rapazes brincando nus no convés do navio, molhando-se uns aos outros com a água das mangueiras. Ao contrário de Louis não procuro desinteressadamente a perfeição nas areias do deserto. Há sempre uma mancha de cor para macular uma página. As sombras das nuvens passam sobre ela. E percebo que o poema é feito do som da tua voz. Alcibíades, Ajax, Heitor e Percival, também se confundem contigo. Todos gostavam de longas cavalgadas, arriscavam destemidamente as vidas e nenhum deles possuía uma grande cultura. Mas tu não és nem Ajax nem Percival. Eles não franziam o nariz nem esfregavam a testa com esse gesto que só a ti pertence. Tu és tu. É isso que me consola da falta de muitas coisas (sou feio e frágil) da depravação do mundo, da juventude que me foge, da morte de Percival, da amargura, dos rancores e das incontáveis invejas.
Mas se um dia não vieres depois do pequeno-almoço, se algum dia te vir num espelho a olhar outro homem, se o telefone tocar inutilmente no teu quarto vazio, então, depois de angústias indizíveis – pois não tem limites a loucura do coração humano – procurarei e encontrarei outro ser que sejas tu. Entretanto, vamos abolir com um simples gesto o tic-tac do relógio do tempo. Chega-te para mais perto de mim.
Virginia Woolf
segunda-feira, 5 de março de 2012
Quite emotional now
madrugada | quite emotional
A minha maneira de amar-te é simples:
aperto-te a mim
como se tivesse um pouco de justiça no coração
e ta pudesse dar com o corpo
Quando te revolvo os cabelos
algo de lindo nasce das minhas mãos
E não sei quase mais nada. Aspiro apenas
a estar contigo em paz e a estar em paz
com um dever desconhecido
que às vezes me pesa também no coração
Antonio Gamoneda
With the sun in our eyes
shearwater | landscape at speed
Meus olhos não fabricam
a realidade ou tu:
limpos barcos,
novidade acesa como a terra viva,
movimento de braços, amálgama
exacta duna.
Meus olhos não fabricam mas encontram.
A terra que se enche já vem cheia,
o hálito começa na claridade do céu.
Os homens dançam por vezes.
Este momento é teu.
(...)
Silêncio no teu olhar, na tua boca.
Em tua língua primitiva o mar se olha.
É o deserto e falas, boca brusca
de ignorado alento.
Não te construo, constróis-me, construo-te
Construo-te, mar,
parede pura,
criada.
Aqui onde o sol se acende em carne,
onde a casa é um nome de mar,
e os frutos e os espelhos
amadurecem o corpo solidário:
É Verão.
Aqui tu és
lenta verdade no sossego do sangue:
circulação de nomes e de peixes.
(...)
Esta ciência de inocência e água
se toco, delicado, ou pão ou página,
ou corpo, ou fruto, ou verde folha,
este pisar que é duro e leve,
a frescura e a sombra, o ar, a luz
- tudo me dás, tudo te dou, tudo nos damos.
E a terra mais próxima e as ervas
e os bichos translúcidos entre pedras,
a serena eclosão dos nomes, cabeleira
sobre o corpo fresco, intenso e nu.
Verdade ainda mais próxima dos tranquilos campos,
paz que se alonga às searas por um corpo amado,
renhidamente amado entre a verdura
na noite de estrelas claras e estáticas.
Sóbrio o teu corpo me pede
penetração: nomes puros:
os de boca, braços, mãos
sobre a terra e sobre os muros.
Sóbrio o teu corpo me pede
nomes justos, nomes duros:
os da terra, fogo e punhos,
claros, acres, escuros.
António Ramos Rosa
domingo, 4 de março de 2012
E eu anavalhei-te com naifas de ansiedade
a naifa | gosto da cidade
Gasto-me à espera da noite
impraticável
fiel
sugo os lábios da noite
invariável caio
nos poços da noite
Gasto-me à espera da noite alheia
amassada de gargalhadas doces e areia
Amor anoitecido vem
tecer-me um vestido
nocturno
Atraiçoo os anúncios luminosos
até a lua nova sabe a ausente
- e eu anavalhei-te com naifas de ansiedade -
Estou à espera da noite contigo
venham as pontes ruindo sob os barcos
venham em rodas de sol
os montes os túneis e deus
Estou à espera da noite contigo
livre de amor e ódio
livre
sem o cordão umbilical da morte
livre da morte
estou
à espera
da noite
Luiza Neto Jorge
quinta-feira, 1 de março de 2012
Tens os amantes
leonard cohen | dance me to the end of love (live)
Tens os amantes,
sem nome, as suas histórias são só deles,
e tens o quarto, a cama e as janelas.
Procede como se fosse um ritual.
Desdobra a cama, sepulta os amantes, enegrece as janelas,
deixa-os viver nessa casa durante uma geração ou duas.
Ninguém se atreve a perturbá-los.
Pelo corredor, os visitantes passam em pontas dos pés junto da porta,
tanto tempo fechada,
atentos a algum ruído, um gemido, uma canção:
não se ouve nada, nem sequer respirar.
Sabes que não estão mortos,
sentes a presença do seu intenso amor.
Os teus filhos crescem, deixam-te,
convertidos em viajantes e soldados.
O teu marido morto após uma vida de serviço.
Quem te conhece? Quem te recorda?
Mas em tua casa um ritual progride:
não terminou: necessita de mais gente.
Um dia a porta abre-se para os aposentos do amante.
O quarto converteu-se num denso jardim,
cheio de cores, odores, sons que não conhecias.
A cama, lisa como uma obreia de sol, só no meio do jardim
na cama com os amantes, lenta, deliberadamente e em silêncio,
realizam o acto do amor.
Os olhos cerrados,
apertados como se tivessem pesadas moedas de carne sobre eles.
Os seus lábios magoados, com novas e velhas pisaduras.
O cabelo e a barba desesperadamente enredados.
Quando ele põe a sua boca no seu ombro
ela duvida que seja o seu ombro
o que deu ou recebeu o beijo.
Toda a sua carne é como uma boca.
Ele desliza os dedos pela sua cintura
e sente a própria cintura acariciada.
Ela abraça-o mais estreitamente e os seus braços cingem-se
em redor dela.
Ela beija a mão junto da sua boca.
Que seja a mão dele ou dela, pouco importa,
há muitos mais beijos.
Estás junto da cama, chorando de felicidade,
cuidadosamente retiras os lençóis
dos corpos em lento movimento.
Os teus olhos estão cheios de lágrimas, mal distingues os
amantes.
Cantas enquanto te despes, e a tua voz é magnífica
porque agora acreditas que é a primeira voz humana que se
ouve neste quarto.
A roupa que deixas cair, transforma-se em parras.
Sobes para a cama e recuperas a carne.
Fechas os olhos e deixas que se fechem cosidos.
Provocas um abraço e cais nele.
Há só um momento de dor e de dúvida
quando te perguntas quantas multidões estão deitadas junto
do teu corpo,
mas uma boca beija e uma mão afasta esse momento.
Leonard Cohen
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