domingo, 29 de janeiro de 2012
Uma história sem refúgio
trespassers william | my hands up
Luz descerrada e crua
Que não rodeia as coisas
Mas as desventra
De fora para dentro
Espaço de uma história sem refúgio
Tudo é como um interior violado
Como um quarto saqueado
Luz de máquina e fantasma
Sofia de Melo Breyner Andresen
quinta-feira, 26 de janeiro de 2012
Good lovers make great enemies
ben harper | please bleed (live from mars)
Dizes que me amas de uma tal forma,
que não consigo deixar de corar;
que me amas de um modo primitivo,
sem razão aparente e sem desculpas
e que me amas porque me desejas,
porque sabes que eu também te amo
e como o monstro deste amor nos devora
a alma, a paciência e as maneiras.
É uma pena que todas estas coisas
morram em nós afogadas de silêncio.
Amalia Bautista
terça-feira, 24 de janeiro de 2012
E mesmo os poemas todos que escrevi não me pertenceram
nick cave & the bad seeds | as i sat sadly by her side
Nada me pertenceu - nem o vestido indecente
que pedi emprestado para te oferecer os seios, nem
os seios, que eram já teus muito antes do vestido.
O sorriso que devassou brevemente o meu rosto não
me pertenceu; porque ninguém o viu antes de ti,
nem o espelho se convenceu a devolver-mo.
Todas as coisas que a casa guardou quando partiste não
me pertenceram; porque, ao tocar-lhe nos dias mais
cinzentos, sinto que é pelo calor dos teus dedos que ainda
gritam; e mesmo a cama onde só teu corpo era bem-vindo
nunca chegou a ser inteiramente minha, pois, de contrário,
encontraria nela o meu lugar, e não o teu vazio.
Tu não me pertenceste - e, se uma vez acreditei que
acontecias dentro do meu corpo, das outras vi-te abraçar a
solidão com tanto ardor que concluí ser a memória quem
te mantinha vivo. O meu coração, contudo, sempre
te pertenceu - e a mão desesperada que o procura não
sente bater longe do teu peito. E mesmo os poemas todos
que escrevi não me pertenceram, porque essa vida
que pulsava no papel levaste-a tu contigo na hora
em que te foste - e a que tenho agora é mais
branca e vazia do que a morte, não é vida nem nada
que eu queira alguma vez que me pertença.
Maria do Rosário Pedreira
segunda-feira, 23 de janeiro de 2012
A noite
morphine | the night
a noite é um telefone público.
uma voz que não atende.
um corpo que se agita no desassossego do meu.
Al Berto
domingo, 22 de janeiro de 2012
You should have seen the curse that flew right by you
the mars volta | televators
Eu tenho raiva à ternura. Eu tenho raiva de ter raiva à ternura. Eu tenho a doença da ternura por ter raiva. Eu tenho tudo excepto a ternura. Eu não tenho ternura e sofro de inveja de quem tem ternura. Eu já só tenho raiva.
Manuel Cintra
quinta-feira, 19 de janeiro de 2012
Por qualquer razão inútil que não vais nunca entender
wild beasts | lion's share
Escrevo, decerto, por qualquer
razão inútil que não vais nunca entender.
Surgem as frases, vês, desconhecidos
que no bar do acaso encontro e são
as tuas mãos a escrever por mim.
Minto-lhes, digo que só te amo
a ti, eles riem e pedem-me pra ficar,
que sim, que a noite ainda é uma pequena
musa no breve altar venal do coração.
Fico. Dou à boca o jeito do cigarro
e é em fumo que transformo o corredor
de imagens, metáforas, pequenos desvios de
ritmo mais pobre ou queda sempre a pique
em sentido nenhum. Às vezes, sabes, é mais
difícil descobrir que o amor, como o cigarro,
quando se acende é que começa
a iluminar o fim.
Rui Costa
segunda-feira, 16 de janeiro de 2012
Where do my bluebird fly?
the tallest man on earth | where do my bluebird fly
para te manteres vivo - todas as manhãs
arrumas a casa sacodes tapetes limpas o pó e
o mesmo fazes com a alma - puxas-lhe brilho
regas o coração e o grande feto verde-granulado
deixas o verão deslizar de mansinho
para o cobre luminoso do outono e
às primeiras chuvadas recomeças a escrever
como se em ti fertilizasses uma terra generosa
cansada de pousio - uma terra
necessitada de águas de sons de afectos para
intensificar o esplendor do teu firmamento
passa um bando de andorinhões rente à janela
sobrevoam o rosto que surge do mar - crepúsculo
donde se soltaram as abelhas incompreensíveis
da memória
luzeiros marinhos sobre a pele - peixes
que se enforcam com a corda de noctílucos
estendida nesta mudança de estação
Al Berto
domingo, 15 de janeiro de 2012
A lua cheia escureceu nas águas
sérgio godinho | a noite passada
Estranho é o sono que não te devolve.
Como é estrangeiro o sossego
De quem não espera recado.
Essa sombra como é a alma
De quem já só por dentro se ilumina
E surpreende
E por fora é
Apenas peso de ser tarde. Como é
Amargo não poder guardar-te
Em chão mais próximo do coração.
Daniel Faria
quinta-feira, 12 de janeiro de 2012
As gavetas
angus & julia stone | draw your swords
Não deves abrir as gavetas
fechadas: por alguma razão as trancaram,
e teres descoberto agora
a chave é um acaso que podes ignorar.
Dentro das gavetas sabes o que encontras:
mentiras. Muitas mentiras de papel,
fotografias, objectos.
Dentro das gavetas está a imperfeição
do mundo, a inalterável imperfeição,
a mágoa com que repetidamente te desiludes.
As gavetas foram sendo preenchidas
por gente tão fraca como tu
e foram fechadas por alguém mais sábio que tu.
Há um mês ou um século, não importa.
Pedro Mexia
terça-feira, 10 de janeiro de 2012
You already know how this will end
devotchka | how it ends
Trago-te a palavra sim
escondida entre os dedos.
Lembra-te da luz teimosa e certa
com que dedos podem esconder palavras.
Esconder é só mostrar o infinito.
Manuel Cintra
domingo, 8 de janeiro de 2012
O rádio sempre a tocar um coração avariado que não posso desligar
marissa nadler | heart paper lover
Desculpa-me se voltei a acreditar. Não digas a ninguém, é segredo. Perdoa por me ter perdido entre poemas que não são meus – sempre à procura do teu cheiro. Por não saber dizer do brilho dos teus olhos pequenos e da grandeza do sorriso que me roubaste. Tu não sabes. Desculpa se ainda lembro todas as palavras e gestos – guardo as tuas mãos nos meus ombros – e deixa que também eu te abrace sem medo de cair. Esquece o que não te disse e ignora se rio demais. Não repares se enrolo o cabelo enquanto falo ou se brinco com o anel que trago no dedo. Não adivinho esse olhar dourado preso a mim. Quase a revelar segredos. Ou um arrepio sincero quando me notei reflectida. Eu não sou feita de improvisos, sou preenchida por tristezas – e medos que escondo atrás do espelho. Estou cansada de dançar sozinha. De procurar o meu vazio nos braços dos outros. Em ti, encontrei vida: a claridade de um momento feliz num cigarro trémulo. E agora escrevo. Desculpa-me por traduzir desejos e cobardias que não sei calar. E já nada te afasta, as palavras abrem-se como caminhos na minha pele, e a tua voz flutua lentamente na memória. Até cair em vertigem nos meus sonhos mais luminosos. Experimento um grito que te chame e tento abrir os olhos mas resta-me a invisibilidade das noites impossíveis. Apetece-me um lugar onde me possa comover, uma janela para o mundo, - só o teu - onde possa chorar a alegria de te ver. De olhos despertos para um coração desmantelado. Preciso arder contigo, quero o teu rosto junto ao meu; outra vez. Num milagre qualquer. Deixa-me afogar na doçura deste erro. E desculpa (esta insistência cega que geme baixinho) se te trago comigo.
sábado, 7 de janeiro de 2012
My poetry was lousy you said
joan baez | diamonds and rust
Deixarei os jardins a brilhar com seus olhos
detidos : hei-de partir quando as flores chegarem
à sua imagem. Este verão concentrado
em cada espelho. O próprio
movimento o entenebrece. Chamejam os lábios
dos animais. Deixarei as constelações panorâmicas destes dias
internos.
Vou morrer assim, arfando
entre o mar fotográfico
e côncavo
e as paredes com as pérolas afundadas. E a lua desencadeia nas grutas
o sangue que se agrava.
Está cheio de candeias, o verão de onde se parte,
ígneo nessa criança
contemplada. Eu abandono estes jardins
ferozes, o génio
que soprou nos estúdios cavados. É a dor que me leva
aos precipícios de agosto, a mansidão
traz-me às janelas. São únicas as colinas de ar
palpitando fechado no espelho. É a estação dos planetas.
Cada noite é um abismo atómico.
E o leite faz-se tenro durante
os eclipses. Batem em mim as pancadas do pedreiro
que talha no cálcio a rosa congenital.
A carne, sufocam-na os astros profundos nos casulos.
O verão é de azulejo.
É em nós que se encurva o nervo do arco
contra a flecha. Deus ataca-me
na candura. Fica, fria,
esta rede de jardins diante dos incêndios. E uma criança
dá a volta à noite, acesa completamente
pelas mãos.
Herberto Helder
sexta-feira, 6 de janeiro de 2012
My body's an anchor
lanterns on the lake | ships in the rain
Por uma vez conta como o corpo se ajusta à superfície
das tuas palavras. Fala de um depois anterior, desse sono
demente na fissura da luz; do violento voo ou da ferida
cíclica, a ausência excedendo-se na pele quando a desoras
perfumas minhas mãos. Estende-se o calor aos lábios,
o Verão simula a duração no verso, circula a água, vigorosa,
no fundo do poço até desaparecer na cama muda.
Nada é o que parece, lembra-se o que se esquece e eu digo
os dedos descalços dissolvem em tua boca o mel à flor dos
destroços.
Olha-me: deita o olhar em meu vestido, tira-o
num gesto ébrio e precipitado como a um prisioneiro,
os peixes sobem lestos no lago imoderado e a noite volta,
lenta, adormecida.
Dou-te o que não tenho – a história
de um rio exultante a explodir na boca em versão romântica,
poema sem trágicos sulcos ou fala completa.
E tu, tu dás-me
o que sou: metáfora doendo-se alto onde acaba o texto.
Ana Marques Gastão
quarta-feira, 4 de janeiro de 2012
Uma voz na pedra
feist | lonely lonely
Não sei se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.
Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha ebriedade é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.
O que eu amo não sei. Amo. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.
António Ramos Rosa
terça-feira, 3 de janeiro de 2012
Porque tu habitas o silêncio de todos os silêncios
shearwater | castaways
Se eu sou nada esse nada deseja
ser e só no amor encontra a consistência
que envolve o nada que o acolhe e o liberta
para ser oferenda a ti deus ignorado
O que eu sou é pouco para ti e é demais
e só o zero em mim é o teu círculo
e só no seu silêncio está o teu nome
Nada sabendo de ti sei que és o Simples
e se de ti não ouço o mais leve múrmurio
é porque tu habitas o silêncio de todos os silêncios
e é por esse silêncio que morro e ressuscito
António Ramos Rosa
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