quinta-feira, 29 de dezembro de 2011
Estende a tua mão contra a minha boca
mercedes sosa | todo cambia
sou eu que te abro pela boca,
boca com boca,
metido em ti o sôpro até raiar-te a cara,
até que o meu soluço obscuro te cruze toda,
amo-te como se aprendesse desde não sei que morte,
ainda que doa o mundo,
a alegria
Herberto Helder
terça-feira, 27 de dezembro de 2011
Duas cidades
yodelice | talk to me (les petits mouchoirs ost)
É um fim de tarde e há pressa pelas ruas.
As pessoas passam e não sabem
que trago a morte dentro de mim.
Não sabem que os teus olhos eram
como duas chamas e que, por olhar-te,
sou apenas cinza que se arrasta pelos caminhos.
É um início de noite e há pressa pelas ruas.
As pessoas passam e não sabem
que estou numa cidade e que tu estás
noutra cidade e que essa evidência
é tudo o que me resta.
É já noite longa e há silêncio pelas ruas.
As luzes da cidade apagaram-se
e as pessoas já dormem em suas casas.
Não sabem que tu estás num quarto
e que eu estou noutro quarto e que, por isso,
a minha cama é um caixão que acolhe o meu corpo gelado
e que a tua cama, em outra cidade,
é a palha onde se incendeiam dois corpos.
Andreia Ferreira (daqui)
quarta-feira, 21 de dezembro de 2011
A estrada branca
lisa hannigan | silent night
Através da terra o amor
torna-nos estranhos à terra
liga-nos a uma divina linhagem
com seu tormento inapagável
suas velocidades enormes
O amor vive na ponta dos cabelos
O amor, ditam os frios do coração, é ruinoso
qualquer momento em chamas
denunciará a imprecisa inquietação que nos toma
Os inocentes que se amam dizem
teu corpo está a nevar
tua alma é uma flor
um prado tranquilo sua noite
Os inocentes que se amam
por seu tormento elevam-se
como plumas
num chapéu de passeio
José Tolentino Mendonça
sábado, 17 de dezembro de 2011
It's true i always wanted love to be hurtful
antony & the johnsons | cripple and the starfish
Penso que nunca vi o teu rosto
Num dia de chuva, quando as sombrias artérias do céu
Pulsam junto às árvores, e no teu coração
A água corre. Nunca te vi chorar
Com o monólogo da noite, com a tua mente resistindo ao silêncio.
Chegará o dia em que as linhas do céu
Se desprenderão das torres
E em que tu, que tremes pela noite
Partirás para os lugares sombrios ao lado de um desconhecido.
Paul Bowles
quarta-feira, 14 de dezembro de 2011
And my heart it is in with the storm
grimes | vanessa
Uma rapariga vai como uma espiga
São cor de areia suas pernas finas
Seu íris é azul verde e cinzento
Uma rapariga vai como uma espiga
Carnal e cereal intacta cerrada
Mas nela enterra sua faca o vento
E tudo espalha com as mãos o vento
Sophia de Mello Breyner Andersen
sábado, 10 de dezembro de 2011
I've buried you in every place i've been
justin vernon | a song for a lover of long ago
Diz-me por favor onde não estás
em qual lugar posso não te ver,
onde posso dormir sem te lembrar
e onde relembrar sem que me doa.
Diz-me por favor onde posso caminhar
sem encontrar as tuas pegadas,
onde posso correr sem que te veja
e onde descansar com a minha tristeza.
Diz-me por favor qual é o céu
que não tem o calor do teu olhar
e qual é o sol que tem luz apenas
e não a sensação de que me chamas.
Diz-me por favor qual é o lugar
em que não deixaste a tua presença.
Diz-me por favor onde no meu travesseiro
não tem escondida uma lembrança tua.
Diz-me por favor qual é a noite
em que não virás velar meus sonhos.
Que não posso viver porque te espero
e não posso morrer porque te amo.
Jorge Luis Borges
sexta-feira, 9 de dezembro de 2011
The way young lovers do
van morrison | the way young lovers do (acoustic guitar)
desenha com a ponta dos teus dedos
as fronteiras exactas do meu rosto
as rugas, os sinais, a cicatriz que ficou da infância
o lento sulco das lâminas onde no peito
se enterra o mistério do amor
e diz-me o que de mim amaste
noutros corpos, noutras camas, noutra pele
prometo que não choro
mas repete as palavras um dia minhas
que sem querer misturaste nas tuas
e levaste com as chaves de casa e os documentos do carro -
e largaste sobre a mesa com o copo de gin a meio
na primeira madrugada em que me esqueceste
Alice Vieira
domingo, 4 de dezembro de 2011
I follow rivers
lykke li | i follow rivers
É tão difícil guardar um rio quando ele corre dentro de nós.
Jorge de Sousa Braga
quinta-feira, 1 de dezembro de 2011
Assim é o amor
the decemberists | sleepless
Estou a amar-te como o frio
corta os lábios.
A arrancar-te a raiz
ao mais diminuto dos rios.
A inundar-te de facas,
de saliva esperma lume.
Estou a rodear de agulhas
a boca mais vulnerável.
A marcar sobre os teus flancos
o itinerário da espuma.
Assim é o amor: mortal e navegável.
Eugénio de Andrade
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