terça-feira, 26 de maio de 2020

One day i will find the right words, and they will be simple *














cat power | the greatest

Desde que me lembro de ser gente, desde que tomei consciência do meu rosto triste nos espelhos, tento ter uma atitude comedida - todos os dias - uma espécie de tentativa inglória para agradar a toda a gente, sem exceção - a todos, menos a mim mesma. Por vezes deixo escapar algum gesto exagerado das mãos, ou algum esgar infantil que ainda sobra dos dias inocentes de leite e bolachas de canela da minha avó. Tenho alturas de ouvir vozes quase imperceptíveis numa espécie de sussurro, que imediatamente me impelem um silêncio forçado. Por isso, assumo toda a culpa do que me acontece e deixo-me ficar petrificada, de olhar perdido, enquanto a maior parte das vezes deixo a água escorrer veloz na banca do lava-loiça. Sabes, desde sempre odiei (sim, eu sei que é uma palavra muito forte) tons de voz que subiam, ou movimentos demasiado bruscos devido a uma família sentimentalmente ruidosa. E eu, desde a infância, mesmo quando ficava muda e com as mãos a tapar os ouvidos num canto aleatório da casa, esmagada por todo e qualquer barulho, sentia a opressão de uma vida sem silêncio a crescer dentro de mim, onde qualquer movimento se transformava numa tragédia anunciada aos quatro ventos ou tudo parecia tornar-se palco de palavras violentas e surdas. Talvez entendas agora: assim fui aprendendo aos poucos a calar, a falar pouco e, depois de refletir, a nunca ter pressa para falar, a prolongar o mais possível os meus tempos de reação preenchendo-os com olhares de perplexidade e sorrisos de incerteza perante a realidade que sempre conheci. Depois foi muito fácil acomodar-me na dormência dos dias e deixar-me levar - durante décadas - por uma apatia aparentemente confortável e acolhedora, essa paz podre que nada questiona.

Hoje amanheço dolorosamente, escrevo aquilo que posso e construo-me esta madrugada letra a letra, devagar. Das palavras que para ti guardo não sei mesmo se alguma delas faz sentido. Não importa. Há nestes dias ansiosos qualquer outra coisa que espreita e que me rouba o pensamento para os dias nublados da infância. Não sei já dizer. Não encontro a palavra mais justa para dizer - e nos olhos que baixo na tua presença há já uma outra cor. Outra cor da minha dor calada.

Sabes, às vezes dói-me os dedos, de tanto os cerrar, ou a pele, tanto faz, e as madrugadas tornam-se frias. E mesmo quando as tuas mãos vêm ao meu encontro, a memória do caos e da dor insiste em permanecer, cruel, solitária, a lembrar-me o medo e o desespero das horas caladas e vazias. E choro para dentro. E quando finalmente adormeço no calor dos teus braços, fica-me a sensação de te ter amado tão pouco, e tu mereces tudo. Porque - nunca - ninguém em tempo algum, amou assim como tu, o meu amor calado. 

Amo-te.

* Jack Kerouac