são tão altas as paredes da noite
tão habitadas pela estranheza de existirmos. tanta é a insónia
que me visita para me deixar este travo de amargor
esta suspeição de que para lá de todo o mundo
existe qualquer outra coisa
de que nem sei a cor
nem o sabor
(tento recuperar o meu corpo
a morna quietude do meu corpo
e acontece-me despertar
sempre e cada vez mais)
- há qualquer coisa de antigo neste estar aqui
a esta hora despropositada e perdida
a tentar alinhavar uma carta -
(o tempo que nos engole os dias e
o tempo que nos expulsa em solidão à luz do sol)
dias a dias a roda incessante das horas nos rouba
o sonho feliz. provavelmente
é um certo vazio que se instala entre os ossos e
a cor do olhar. perco-me tantas vezes quando
vigio o outro lado do mundo
perante o imenso das águas
de que quase sinto o rugido
aqui
sentada no silêncio e digo
- então a vida é isto?
a gente entrega assim
tantas vezes
demasiadas vezes
um corpo
a outro
corpo
na esperança que ele o devolva roído de
ossos e tristezas e no
final
os dias são a hora exacta dos olhos no momento em que uma dor
qualquer
maior que a hora toda
se interpõe entre
mim
e
ti
(carregamos todos demasiados segredos
dores inconfessáveis e antigas
carreiros sinuosos por onde as lágrimas calam
e secam)
sei: há esse quotidiano de mãos
que se afundam na distância
e beijos por dar
sempre por dar
há essa fronteira de vidro
inquebrantável fronteira de vidro e casas de onde semeamos estas palavras
como segredos
(quanto
que de nós resta
depois da morte sussurrada
depois da morte
da doce morte
que assoma em cor
ao teu rosto
em água à tua boca
e se faz e desfaz
entre pernas e lençóis e vida
- uma pequena morte que reclamamos como nossa
um pedaço de ressurreição
possivelmente uma terra de renovadas boas-novas
- sei)
a verdade é que uma andorinha nunca basta
para toda a primavera
e como poderíamos então
crescermo-nos como outras terras
um no outro?
(temo ter-te já dito demasiado)
o que na verdade acontece é palpável apenas
no pensamento
sobra sempre um olhar
que vigia o frio rugido em que os dias
como o mar
se estendem para lá
sempre para lá
sempre
para lá
tremenda
do meu ventre
rebentando agora cálida à tua beira
não é essa carne viva e pulsante como astro
mas uma qualquer outra história
de invisíveis enredos
mãos bocas fios e abismos com peixes dentro
onde marés e olhos
desvendam no mar os rios e
os ardores do sol
sabem
inevitavelmente
ao luar que aí morre