terça-feira, 28 de março de 2017

Snow










fiona apple | i want you

Every time it starts to snow, I would like to have
sex. No matter if it is snowing lightly and unseri-
ously, or snowing very seriously, well on into the
night, I would like to stop whatever manifestation
of life I am engaged in and have sex, with the same
person, who also sees the snow and heeds it, who
might have to leave an office or meeting, or some ar-
duous physical task, or, conceivably, leave off having
sex with another person, and go in the snow to me,
who is already, in the snow, beginning to have sex in
my snow-mind. Someone for whom, like me, this is
an ultimatum, the snow sign, an ultimatum of joy,
though as an ultimatum beyond joy as well as sor-
row. I would like to be in the classroom — for I am
a teacher — and closing my book stand up, saying
"It is snowing and I must go have sex, good-bye,"
and walk out of the room. And starting my car, in
the beginning stages of snow, know that he is start-
ing his car, with the flakes falling on its windshield,
or, if he is at home, he is looking at the snow and
knowing I will arrive, snowy, in ten or twenty or
thirty minutes, and, if the snow has stopped off, we,
as humans, can make a decision, but not while it is
still snowing, and even half-snow would be some
thing to be obeyed. I often wonder where the birds
go in a snowstorm, for they disappear completely.
I always think of them deep inside the bushes, and
further along inside the trees and deep inside of the
forests, on branches where no snow can reach, deep-
ly recessed for the time of the snow, not oblivious
to it, but intensely accepting their incapacity, and
so enduring the snow in brave little inborn ways,
with their feathered heads bowed down for warmth.
Wings, the mark of a bird, are quite useless in snow.
When I am inside having sex while it snows I want
to be thinking about the birds too, and I want my
love to love thinking about the birds as much as I
do, for it is snowing and we are having sex under
or on top of the blankets and the birds cannot be
that far away, deep in the stillness and silence of the
snow, their breasts still have color, their hearts are
beating, they breathe in and out while it snows all
around them, though thinking about the birds is not
as fascinating as watching it snow on a cemetery, on
graves and tombstones and the vaults of the dead,
I love watching it snow on graves, how cold the
snow is, even colder the stones, and the ground is
the coldest of all, and the bones of the dead are in
the ground, but the dead are not cold, snow or no
snow, it means very little to them, nothing, it means
nothing to them, but for us, watching it snow on the
dead, watching the graveyard get covered in snow, it
is very cold, the snow on top of the graves over the
bones, it seems especially cold, and at the same time
especially peaceful, it is like snow falling gently on
sleepers, even if it falls in a hurry it seems gentle,
because the sleepers are gentle, they are not anxious,
they are sleeping through the snow and they will
be sleeping beyond the snow, and although I will
be having sex while it snows I want to remember
the quiet, cold, gentle sleepers who cannot think of
themselves as birds nestled in feathers, but who are
themselves, in part, part of the snow, which is falling
with such steadfast devotion to the ground all the
anxiety in the world seems gone, the world seems
deep in a bed as I am deep in a bed, lost in the arms
of my lover, yes, when it snows like this I feel the
whole world has joined me in isolation and silence.

Mary Ruefle

segunda-feira, 27 de março de 2017

A little girl lost in the woods










morphine | the night

tinha uns olhos de uma tal profundidade que, a princípio, uma pessoa sentia que podia cair lá dentro como num mar, um mar de sentimento. e em seguida, deixavam de ser um mar absorvente para se transformarem em faróis dotados de uma extraordinária intensidade de visão, de consciência e de percepção. onde pousassem aqueles olhos, todos os objectos adquiriam significado. eram ao mesmo tempo tão vulneráveis e tão sensíveis que tremiam como a chama delicada de uma vela ou como o diafragma de uma lente fotográfica muito sensível, que se fecha subitamente quando a luz do dia é intensa demais. percebia-se que havia dentro dela uma câmara escura, tal como num laboratório de fotografia, na qual a exposição à luz do dia, à crueza e à brutalidade causava o aniquilamento instantâneo da imagem. aqueles olhos davam a impressão de terem uma visão do mundo mais apurada. se a sensibilidade os levava a retraírem-se, a contraírem-se rapidamente, isso não acontecia porque se protegessem cegamente, mas para poderem regressar a essa câmara interior onde se desenrolava a metamorfose, através da qual a dor pessoal se transformava na do mundo todo, e a experiência pessoal da fealdade se transformava na experiência que o mundo dela tem. ao aumentar e situar o acontecimento insuportável na totalidade do sonho, transformavam-no numa compreensão da vida, ampla e arejada, e era isso que lhe dava aos olhos um poder essencialmente triunfante, que as pessoas tomavam erradamente por força, e que era na realidade coragem.

Anaïs Nin

sexta-feira, 24 de março de 2017

Diários







cat power | crying waiting hoping

Eis a noite da noite onde abro e folheio livros. Esqueço a minha vida toda, ponho-me a cismar sobre aquilo que ainda não sonhei. E aceito como único alimento, o brilho estático das estrelas. Aceito como único presságio a melancolia aérea das açucenas. Aceito como único consolo a desolação imensa dos teus braços. Aceito como único vício aquele cuja pele ainda não toquei. Aceito como única noite a das searas do fundo do mar. Aceito como única fala possível aquela que é susceptível de rasgar pulsos. Aceito como único corpo aquele que não cresceu dos relógios do mundo. Aceito como único sonho aquele espelho onde te reflectes e me encontro, a noite que me devora, aceito esta dor que me consome, esta escrita, este coração, este silêncio cada dia maior e mais perturbador, aceito esta cadeira, este livro, este nome, estes olhos esmagados pela insónia, esta cama vazia, este frio, aceito esta janela, esta música , esta faca, este sussurro, esta ausência, estes cadernos rabiscados que não servem para grande coisa... aceito a inutilidade de viver, de morrer, de estar aqui, de me deslocar, de permanecer imóvel, de esperar, a inutilidade de ouvir, de falar, de escrever, de amar, aceito o abismo, o olhar ferido na penumbra dos quartos, a dor das mãos percorrendo um corpo, aceito este vazio, aceito esta loucura que me assola lentamente, lentamente, aceito ficar louco, inconsciente, indefeso, aceito viver com estas garras cravadas na alma, aceito a tristeza que me ofereces, a pouca água que necessito para a minha sede, aceito nunca mais me lembrar de mim, nunca mais te tocar, aceito não possuir nada, não querer nada, aceito, aceito nunca mais aqui voltar, nunca mais.

Al Berto

terça-feira, 21 de março de 2017

Cairão os anos







nick cave & the bad seeds | love letter

Não deites fora as cartas de amor
Elas não te abandonarão.
Passará o tempo, apagar-se-á o desejo
- essa flecha de sombra -
e os rostos sensuais, inteligentes, belíssimos
ocultar-se-ão em ti, no fundo do espelho.
Cairão os anos. Cansar-te-ão os livros.
Decairás ainda mais
e perderás até a poesia.
O ruído frio da cidade nos vidros
acabará por ser a tua única música,
e as cartas de amor que tiveres guardado
serão a tua última literatura

Joan Margarit

sexta-feira, 17 de março de 2017

*







beirut | elephant gun

Estavas de costas
e eu toquei-te num ombro.
Demoraste três anos a voltar-te, o sol caía.

Joaquim Manuel Magalhães 

segunda-feira, 13 de março de 2017

Se alguma coisa nasceu para voar











angel olsen | drunk and with dreams

As águias não deviam ser aves
mas corações aduncos e com asas:

se olhares à flor dos campos e das casas 
sentes o peito maior do que a amplidão:

se alguma coisa nasceu para voar
foi o teu coração. 

Carlos de Oliveira 

quarta-feira, 1 de março de 2017

Aniversário











beck | lost cause

Há tanto tempo eu
trazia um vestido curto nós
subíamos as escadas eu
à frente sem reparar deixava
as pernas ao desamparo do teu
agrado, tínhamos bebido ao meu
futuro e era uma fuga ao teu
presente um disco que me deste
reluzia em semi-círculo e a nós
excitava seriamente escapar eu
fazia vinte anos tu
relanceavas-me as pernas eu
abandonava a adolescência
nem olhara para trás tu
miravas-me as pernas de trás. Nós
subíamos ao telhado eu
trazia um vestido curto nós
estávamos tristes creio tu
fingias-te um sátiro e nós
subíamos ao alto desarmados.
O tambor do sol batia
nos olhos que a luz e o álcool e a luz
e o álcool diminuíam
e os brancos raiavam o solstício
incandescentes eu
fazia vinte anos tu
tinhas-me dado uma música eu
rodava-a na mão e o sol
girava no gume do metal eu
de vestido curto descrevia
um círculo de desejo nós
estávamos tristes creio nós
tínhamos subido e a crista
das telhas beliscava na pele
petéquias de luz e tu
ao disco do sol dançavas e eu
de olhos cegos espiava fazia calor nós
tínhamos bebido e tínhamos calor eu
já tinha vinte anos nós
éramos o grande amor

Margarida Vale de Gato