quinta-feira, 22 de outubro de 2015

A última ceia
















johnny cash | hurt

Acaba assim: um dia, um homem que perguntava coisas, perguntou por mim. Faz de conta, estávamos sentados numa sala à beira de um rio. Era jantar e era quase noite. Noite mesmo, não apenas aquela luz decrépita do fim de dia. Lá fora descobrimos que, olhando por dentro da transparência da escuridão, este lugar era nenhures. Chegámos lá como quem segue um mapa e de repente se esquece do caminho. Quando assim é, vamos sempre dar a um sítio novo, quase roubado à lembrança de alguém.  

Tu dizias do vinho, da comida, da noite, do medo. Não, do medo não dizias nada. Dizias do mal de viver, do mal viver. Mas não podias falar de mim, não fales para mim. Não fales de mim ao medo. O medo, diz-se, é ácido e eu sou este animal de urgência. Estou aqui na urgência da nudez e tu não sabes. Também não sabes o que custa arrancar palavras ao corpo para me lavar deste mal. O mal de morrer a cada hora. Deve haver qualquer coisa que me escapa por entre as mãos, algum sentido neste vazio da alma. Por vezes roemos assim uma espécie de vazio no estômago e não há vinho maduro nem pão que nos possam bastar. Enclausurados por dentro de palavras por dizer, é um amor que se desfaz em lençóis e mortalhas. E é esta a verdadeira última ceia, a nossa: dividimos o pão e sobra-nos o medo; a existência num trago de amargura. 

Um homem e uma mulher. É quanto basta para silenciar a palavra. Um só toque e o meu corpo escorre-te por entre os dedos. Por isso, vai. Vai embora. Eu não quero a ressurreição da carne em cada dia. Prefiro morrer mesmo, algures. Este será o deserto que se levanta entre os teus braços – aí o meu corpo morrerá. Caminharei com os pés nus nas areias quentes da memória. Para aí te entregar a minha alma.

O lugar mais antigo, tão nosso, é esse onde morremos. Viajei muito correndo atrás de uma noite passada aí, à beira de um rio de lágrimas, onde tu dissesses - entre malas e palavras, que as minhas asas são mãos de largar, de tocar e fugir. É, agora tenho medo. Acordei numa cama desconhecida entre umas mãos cálidas e uns olhos grandes, luminosos, que me contam uma alma errante. E depois vim a saber dos segredos insondáveis que me resgataram da morte.

Anda, dizes. Fiz-te café. Regressa aqui a esta casa impossível, à beira de mim e senta-te. Hoje não há qualquer som que interrompa a tua permanência. É um céu, um abismo do céu à terra: há entre um homem e uma mulher qualquer coisa de redondo céu, infinito. É que eu sempre me feri com a fala dos outros – e abriu-se o casulo da memória do meu corpo, com toda a urgência de acontecer. Não tenho medo: prefiro o fim.

Assim: um momento em que o tempo se esquecesse e tudo fosse bom. A memória de beijos e abraços e canções de embalar tristezas. Na cama, por sob os lençóis, o balanço à vez suave, à vez bruto da vida; os dias que o tempo engole voraz em suor e cuspo: líquidos equivocados correndo devagar, noutros olhos.

Noutra boca.
Noutras veias.

Numa outra vida. Também ela inventada.

1 comentário:

Luis disse...

os rios podem haver ou não, mas há sempre um homem e uma mulher