Já não me lembro como se escrevem cartas de amor. Os
telegramas estão fora de moda por isso o que quero dizer há-de nascer na cor dos
meus olhos, vais certamente reconhecê-lo. Evidentemente, estas são palavras cheias de pressa como se a
minha urgência fosse também ela breve e telegráfica.
Então: sabes, hoje durante todo o dia as gaivotas cantaram sobre a casa. Esses
sons invadem-me o sono, há um ar pesado cheirando a chuva que se prende ao
vidro grande da janela do quarto e que cai abandonado no édredon. Estou a dormir e a gata
aninhou-se entre mim e a minha solidão. Despertei ao som de todos estes gritos,
uma tontura que deixa um rasto de agonia, como vou dizê-lo? É uma vaga de palavras
que o meu corpo quer dizer-te, uma vaga salgada de lágrimas por cair.
Eu sei. Não deveria dizer da solidão. Existes tu. E o amor.
Existe esta gata insolente e existe a ávida vontade de dias futuros. É que nasceu-me
isto na cor dos olhos e reconheci-o quase de imediato. A vida é esta coisa meio pesada, por
vezes com um cheiro mofento, de gritos, de mal de amar. No entretanto vou escrevendo palavras soltas para não
esquecer, imagino que as escrevo nas tuas costas com a ponta dos dedos, e quando as
palavras se soltam em carícias o corpo todo parece ir atrás delas...
Por exemplo,
se eu disser sons roucos no meio da noite é porque o meu corpo tem medo. Tenho medo
do medo, de sombras que são só sombras. Contemplo as sombras das minhas mãos e
os nós dos dedos, num desses raros momentos a que chamo meus. Depois o tempo
esgota-se. Tudo se tornou terrivelmente importante, a infância fugiu a correr.
Acordei com isto a transbordar-me nos olhos, digo-te, com palavras dentro da
boca e então sobraram-me as mãos para as escrever já que tu não estás aqui para
me ouvir até adormeceres. Tanta coisa a acontecer. E depois falamos todos ao mesmo
tempo, temos coisas importantes para fazer. Mas nada do que eu digo ou faço é mais importante do que isto: é
urgente refazer o corpo e inventar uma história que sobreviva às ausências, aos
ossos roídos pela noite e à carne que os dias vão esmagando. É por detrás dos olhos
que sobrevivem as palavras importantes. Luz e cor como palavras.
São agora esses os meus olhos.
Por exemplo: como saber que a desilusão é o único
início possível para todas as coisas importantes. É importante dizer do medo,
da alma presa aos muros, dos pássaros de asas negras. E esta minha incapacidade de
dizer as coisas importantes. Como cair desamparada dentro da palavra vida. Deixar a
língua tocar-te o céu da boca e sentir os olhos caírem na perfeição do fim do
dia. Dói-me o lado direito do peito numa espécie de dor difusa
que se propaga e agarro-me com força aos lençóis tentando encontrar um chão. É
quando acordo em sobressalto e tento combater a angústia e dormir envolta num
abraço hipnótico. A gente cai do sono como quem cresce, não é? Depois o dia
irrompe com violência e o corpo recorda-se dessa luz branca.
O sofá desagua sob os meus olhos. Há marcas nossas no sofá,
sabias, marcas que denunciam o peso dos nossos corpos, o peso da eternidade. Tu e
eu. Eu e tu. O sofá castanho. Não quero dizer nada verdadeiramente importante. Supõe que
eu tenho uma alma de asas negras disfarçada neste sorriso largo que sossega os
desconhecidos. Talvez a minha memória seja esta coisa, metade medo-metade
concha, e o meu corpo guarde o teu cheiro que se me pega às mãos e me faz
escrever. Tu foste embora e levaste contigo os cavalos a correrem no peito. E o
meu corpo é isto: guarda lugares, inícios, secretas condenações do maravilhoso,
pérolas e mar. Sou um mar salgado à tua espera, somos um homem e uma mulher,
encontrámo-nos algures nesse sítio onde a minha alma subitamente se desfez em
pó.
E não existem prodígios, só tu e eu e esta história. Um início a pôr-nos à
prova todos os dias, um começo doloroso que ainda faz valer a pena todas as dores do
mundo, mesmo que o fim nos pareça, às vezes, tão evidente.
Imagina que não há forma de escapar a isto, que o equívoco que
nos juntou se perpetua e é a história que vale a pena ser contada por detrás
dos olhos, são estas as palavras que merecem ser gritadas da varanda abaixo para
que toda a gente as oiça. Supõe que dos meus dedos escorre um grito e que esse
grito só pode ser de alegria. Sim, eu sei que não existem milagres, nem génios
ou fadas-madrinhas. Mas ainda assim eu amo-te. Essa verdade será sempre o
melhor de tudo: a nossa fortaleza. E o teu peito como a minha casa.