quarta-feira, 13 de junho de 2012

O impossível carinho





















zeca afonso | canção de embalar


Escuta, eu não quero contar-te o meu desejo 
Quero apenas contar-te a minha ternura 
Ah, se em troca de tanta felicidade que me dás 
eu te pudesse repor 
- Eu soubesse repor - 
No coração despedaçado 
As mais puras alegrias de tua infância!

Manuel Bandeira


Lembro-me da letra bem desenhada, das canetas azuis de tinta permanente e da mancha que alastrava devagar naquele papel amarelecido, pousado em cima da nossa mesa de vidro. Ainda eu não sabia ler, e tu dizias que o papel era um poema de amor. Que um dia ias escrever um livro, que já tinhas título, já tinhas tudo. E eu ria sem perceber porquê.

Lembro-me de acordar sobressaltada, peluche debaixo do braço, e escapar da cama como quem não tem para onde ir. Lembro-me dos gritos, eu a esconder-me atrás da porta da cozinha, a ganhar coragem para não chorar mais – mas depois a ser criança e a pedir colo agachada nas tuas pernas furiosas. Tu sem dares conta. Foi assim que comecei a sentir-me ridícula, minúscula, invisível.

Lembro-me de um Natal em que quase não apareceste. Chegaste tarde, já o bacalhau tinha desaparecido dos pratos, as prendas ainda estavam debaixo do pinheiro. E tu de mãos a abanar, como se nada fosse; como sempre. A casa não era a nossa porque em nossa casa não entrava ninguém. Éramos os convidados de quem se tem pena. Coitados, não os podemos deixar sozinhos num dia de festa. Lembro-me também que nesse Natal estragaste tudo. Graças a ti, deixei de acreditar em milagres muito cedo.

Lembro-me de estar à janela com o meu irmão a contar os carros que passavam na rua, depois decorar as cores, e só depois as matrículas. Ele a dizer-me para tapar os ouvidos, que no dia seguinte íamos andar de bicicleta e correr atrás do sol. Valia tudo para eu não chorar. Mas aí eu já percebia algumas coisas.

Lembro-me dos dias passados em casa da minha avó, do tanque em miniatura que havia lá no quintal, eu a fazer de conta que lavava muita roupa, a tirar a água do poço e a correr atrás da minha madrinha com o ancinho. Eu a julgar que podia arrancar batatas e colher flores a vida toda porque era ali que me sentia feliz e não pensava tanto nas horas que me separavam da noite. Era à noite que chegavam os pesadelos, quando tu subias as escadas.

Lembro-me do último aniversário da minha infância. Eu fazia nove anos e tu abalaste para um país estrangeiro sem sequer te despedires. Foi o dia do divórcio. Acho que não foste para mais longe se nunca estiveste perto mas a mágoa é sempre difícil de explicar. Gostava de ter uma lembrança feliz para me apaziguar nos dias difíceis. De saber dar a volta a este medo estúpido de te desiludir algum dia. Vendo bem agora, quem é que desiludiu quem?

Lembro-me de uma tristeza miudinha por me faltares nos momentos importantes. Uma tristeza que se transformou em raiva. Uma raiva que não sabe se perdoa. Lembro-me de não te ter ao meu lado na mesa, de não ter fotografias contigo ou episódios engraçados para poder contar aos amigos. Lembro-me de não saber que dizer quando me perguntavam por ti porque contigo não havia riso. Calava-me, encostada a um canto. Foi assim que começou o silêncio. Estavas longe, estás longe. E é só.

É também por isso que nunca irei escrever um livro. Não tenho título, não tenho história, não tenho nada.

3 comentários:

je suis...noir disse...

Tu "dormes" por nós ambos. Só eu velo.

maria joão moreira disse...

Se eu te disser que fiquei com um aperto no peito ao ler-te, acreditas? E deixas-me discordar de ti numa coisa? Dizes que não tens nada, eu acho que tens tudo... principalmente a capacidade de emocionar os outros... por isso, um pedido: revê a tua decisão de nunca vires a escrever um livro!

StrangerThanKindness disse...

E se não escreveres, deixa as palavras escorrerem-te pelos dedos...