De novo o mar que espero
sentada à janela que dá para as rosas.
Que dá para todas as ruas que passei
com os teus passos. Para a estrada
onde virámos a cabeça para não ver
o homem esvaído no chão.
Depois comemos na casa de um amigo,
bebemos e falámos como se a vida fosse eterna.
À volta a estrada estava limpa, sem sinais
de sangue. As luzes sobre o mar nas duas margens
e a tua mão na minha perna. Lá no céu
um homem esventrado procura as suas asas.
Nada sei de anjos. Eu que espero o mar todos os dias
acredito na rotação da terra e na lei da gravidade.
Mas quando chegas o corpo não tem peso
e as palavras voam em redor de nós
alagadas em suor. E vem o mar.
chris eckman & anita lipnicka | who will light your path?
O truque era este: nenhum possível nos bastava,
mansão de poesia ou tenda de desertos;
amor era o lugar onde habitávamos.
Agora vai ser assim: nunca mais te verei.
Do outro lado do universo, ou naquela estreita rua
por onde escolherei, ao acaso, não ir,
ou talvez junto ao rio, no improvável jardim
onde barcos pintados se misturam às folhas
do vento neste outono distraído,
estarás ardendo, todo feito de água?
Se me vês, perguntas
notícias de frança, coisas dos jornais? como vai
o mundo? e eu que queria
ser vasto e profundo
fico assobiando
rimas trivias; já não sei o nome
que me trouxe aqui. O vento, fora, agita
as folhas de árvores na alameda, são as sombras
que vemos, na parede atravessada pela noite;
compreendes agora? nenhuma literatura,
nenhum chiar da roda inexorável, inoxidável mesmo,
mito, frase, romance, ou fantasia,
nem o extenso fogo que simula, na linha de horizonte,
perfeitamente a aurora borealis,
e nem o mundo, nem o saber do mundo,
te bastarão. Deves partir, para encontrar
o que aqui deixas próximo e invisível,
simples surpresa que se esquece e cessa. Enquanto
viajas, cai-me o cabelo, os dentes, um por dia,
fica cinzenta a pele, e as penas com que cubro
a cisão primitiva natural; no surdo espelho
há um gesto de horror quando o vampiro
irreflectido me promete um beijo.
Tivesse, nesse dia, a bomba rebentado
à passagem da víbora; tivesse o general
mais pontaria, ao ver o chanceler;
tivesse o vão sorriso da princesa
durado até ao chá estar sobre a mesa;
tivesses tu pousado a mão sem medo
nos meus lábios gretados de palavras
e amado em mim o amor que nos confunde,
um mínimo detalhe diferente
traria a cada coisa um outro eco.
Mas minto, certamente? agora entendes? ouves talvez
os tão tranquilos passos nas escadas, e estremece
um deus adormecido no teu peito. Tivesse
eu só feito cessar o tempo, e a terra
como era meu dever e meu direito,
e declarado, ali no chão de estrelas,
que és tu a voz e o incêndio deste campo,
já quem me ouvisse nunca mais podia
ter outro tecto que a manhã celeste,
e assim seria agora: ver-te
como se vê a luz, a treva, o tempo,
ou se veria a paz, quando viesse.
Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa, compro um livro, entro no
amor como em casa.
Lembro-me da letra bem desenhada, das canetas azuis de tinta permanente e da mancha que alastrava devagar naquele papel amarelecido, pousado em cima da nossa mesa de vidro. Ainda eu não sabia ler, e tu dizias que o papel era um poema de amor. Que um dia ias escrever um livro, que já tinhas título, já tinhas tudo. E eu ria sem perceber porquê.
Lembro-me de acordar sobressaltada, peluche debaixo do braço, e escapar da cama como quem não tem para onde ir. Lembro-me dos gritos, eu a esconder-me atrás da porta da cozinha, a ganhar coragem para não chorar mais – mas depois a ser criança e a pedir colo agachada nas tuas pernas furiosas. Tu sem dares conta. Foi assim que comecei a sentir-me ridícula, minúscula, invisível.
Lembro-me de um Natal em que quase não apareceste. Chegaste tarde, já o bacalhau tinha desaparecido dos pratos, as prendas ainda estavam debaixo do pinheiro. E tu de mãos a abanar, como se nada fosse; como sempre. A casa não era a nossa porque em nossa casa não entrava ninguém. Éramos os convidados de quem se tem pena. Coitados, não os podemos deixar sozinhos num dia de festa. Lembro-me também que nesse Natal estragaste tudo. Graças a ti, deixei de acreditar em milagres muito cedo.
Lembro-me de estar à janela com o meu irmão a contar os carros que passavam na rua, depois decorar as cores, e só depois as matrículas. Ele a dizer-me para tapar os ouvidos, que no dia seguinte íamos andar de bicicleta e correr atrás do sol. Valia tudo para eu não chorar. Mas aí eu já percebia algumas coisas.
Lembro-me dos dias passados em casa da minha avó, do tanque em miniatura que havia lá no quintal, eu a fazer de conta que lavava muita roupa, a tirar a água do poço e a correr atrás da minha madrinha com o ancinho. Eu a julgar que podia arrancar batatas e colher flores a vida toda porque era ali que me sentia feliz e não pensava tanto nas horas que me separavam da noite. Era à noite que chegavam os pesadelos, quando tu subias as escadas.
Lembro-me do último aniversário da minha infância. Eu fazia nove anos e tu abalaste para um país estrangeiro sem sequer te despedires. Foi o dia do divórcio. Acho que não foste para mais longe se nunca estiveste perto mas a mágoa é sempre difícil de explicar. Gostava de ter uma lembrança feliz para me apaziguar nos dias difíceis. De saber dar a volta a este medo estúpido de te desiludir algum dia. Vendo bem agora, quem é que desiludiu quem?
Lembro-me de uma tristeza miudinha por me faltares nos momentos importantes. Uma tristeza que se transformou em raiva. Uma raiva que não sabe se perdoa. Lembro-me de não te ter ao meu lado na mesa, de não ter fotografias contigo ou episódios engraçados para poder contar aos amigos. Lembro-me de não saber que dizer quando me perguntavam por ti porque contigo não havia riso. Calava-me, encostada a um canto. Foi assim que começou o silêncio. Estavas longe, estás longe. E é só.
É também por isso que nunca irei escrever um livro. Não tenho título, não tenho história, não tenho nada.
Há noites assim não de outra coisa
que são de si mesmas cheias
até ser insuportável
até cada corpo cheirar exactamente
ao cheiro da sua alma. Há noites assim
que somos nós: Deus nos defenda
de tanta noite haver por dentro
por fora de nós mesmos.
Para caminhar sobre água é necessário antes de mais ter os pés grandes. Suficientemente grandes para que flutuem apesar da gravidade. Para caminhar sobre a água temos de descer dos próprios pés. Não sei se me faço entender. É difícil por vezes fazermo-nos entender assim a caminhar sobre a água.
Há pessoas cujos pés mais parecem folhas de nenúfar. Vivem nos lagos. Afastadas do mundo. De Abril a Setembro florescem. Escondem no seu seio as flores mais surpreendentes. Cor-de-rosa de manhã, um cor-de-rosa que se vai tornando progressivamente azul para o fim do dia.
Há inúmeros lugares onde se pode chegar caminhando sobre a água. O que mais me atraí é habitado por cardumes de peixes cegos. Não faz muito tempo que parti. Talvez (e na melhor das hipóteses) daqui a uns séculos lhes dê noticias. Quando os dedos dos meus pés – do hálux ao dedo mindinho de súbito se iluminarem.
Se tu és a égua de âmbar
eu sou o caminho de sangue
Se tu és o primeiro nevão
eu sou quem acende a fogueira da madrugada
Se tu és a torre da noite
eu sou o cravo ardendo em tua fronte
Se tu és a maré matutina
eu sou o grito do primeiro pássaro
Se tu és a cesta de laranjas
eu sou o punhal de sol
Se tu és o altar de pedra
eu sou a mão sacrílega
Se tu és a terra deitada
eu sou a cana verde
Se tu és o salto do vento
eu sou o fogo oculto
Se tu és a boca da água
eu sou a boca do musgo
Se tu és o bosque das nuvens
eu sou o machado que as corta
Se tu és a cidade profunda
eu sou a chuva da consagração
Se tu és a montanha amarela
eu sou os braços vermelhos do líquen
Se tu és o sol que se levanta
eu sou o caminho de sangue