camané | triste sorte
A felicidade, meu amor, tem a temperatura do teu colo. A chuva a fechar a noite, os cobertores a aquecerem-nos os pés, o meu cansaço, a tua mão no meu cabelo. O mar podia entrar agora pelo chão da sala, invadir a cama, que nem assim eu acordaria.
(...)
Há muito que a hora de jantar já passou, por isso eu na sala escura, a janela preferida da casa aberta porque a chuva cai com força lá fora, parece destruir tudo. Costumava gostar desta janela em dias assim, sentia-me feliz ao ver a água a cair no muro baixo em frente, ao imaginar o mar bravo, perto. Hoje sinto-me cansada deste inverno. Sinto falta do sol, dos dias compridos, das noites quentes, do tempo que não escasseava, como não escasseava o entusiasmo.
O rádio não pára de suspirar a voz quente do fadista: ando na vida à procura de uma noite menos escura que me traga o luar do céu. Volto a ouvi-lo agora que conto o tempo para o teu regresso. O calendário que não tenho diz-me que faltam apenas uns dias. Mas a saudade arrasta os minutos e inventa o sono para eu atravessar a escuridão mais depressa.
Lembro-me, então, dos nossos primeiros encontros. Eu a rezar para que chegasses atrasado: dava-me tempo para respirar, para pensar nas exactas palavras que te diria quando te visse. Depois chegaste - sempre tão bonito, vi-te, fiquei atrapalhada, beijaste-me. E eu, a achar a minha roupa tão ridícula, tudo tão fora do sítio em mim, sem saber o que dizer e o que fazer, apesar de tudo pensado, bem medido, planeado. Mais tarde veio o passeio em frente ao rio, o concerto que tanto queríamos ir, a viagem a Londres. Quando lá chegámos, tu a dizeres a nossa casa, enquanto subíamos as escadas para finalmente chegarmos ao quarto. A nossa casa. Eu só a ouvir: a nossa casa. E a rir-me. Meu Deus, como me fazias rir, especialmente depois daquela manhã tão atribulada! E eu a pensar que de certeza desaparecerias nos próximos dias, já estava a ter a minha dose de felicidade. E entretanto contavas histórias, se calhar para abafar os meus silêncios: tuas, dos teus amigos, das tuas viagens. E eu pensava que gostava de te ter conhecido desde sempre, saber de todos os teus passos, como era a tua voz em criança, a que brincavas no jardim da escola, quantos gafanhotos apanhaste, se tiveste medo do escuro, se te escondias como eu dentro de um guarda-fatos velho à procura de aranhas, para depois as queimar com um fósforo. Um mar de pensamentos a correr na minha cabeça.
Se eu ainda não te amasse na altura, teria sido aí que começaria: sob o céu cinzento de Londres, numa primavera bem distante já deste inverno que por mais que eu faça, parece não se desentranhar de mim.
2 comentários:
Que bom...
Adoro!
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