sábado, 12 de janeiro de 2013

Your pain is no credential here, it's just the shadow of my wound


leonard cohen | avalanche

Ela tinha a ânsia de explicar tudo, mesmo o que para os outros não era explicável. Porque lhe apetecia fazer amor com ele todos os dias?, por exemplo. Que pergunta tonta, diriam. Talvez por isso começou a guardar os rascunhos inúteis daquilo que já escrevera numa caixa de sapatos velha, que forrou com papel colorido e flores secas. Ontem, quando foi ao supermercado, uma senhora idosa olhou-a fixamente e abordou-a em segundos. Disse-lhe que estava apaixonada, muito apaixonada. E ela, sem saber o que dizer ou pensar corou e sorriu, sussurrou um sim abafado e saiu a correr. Passou o resto da tarde a reflectir naquele episódio. E depois surgiram as dúvidas. Mas a verdade é que quando tinha frio procurava invariavelmente o abraço dele, como se nenhum outro corpo conseguisse atenuar esse não sei bem o quê, que se parece com desespero ou outra qualquer forma de o ter também. Agora dava por si a acreditar que nunca fora tão feliz e a inventar para eles todos os destinos possíveis. Um dia rir-se-ia disso, tinha a certeza. Ou então choraria.

Ele, por sua vez, tinha o corpo alto lembrando uma árvore de raízes profundas. Tinha as costas largas e os ombros fortes, lembrando montanhas esquecidas de tempos distantes. Tinha as mãos grandes mas sabia tocar ao de leve, incendiando, provocando arrepios e harmonia, às vezes as duas. Tinha o rosto iluminado, como os olhos, por vezes cheios de preocupação e beleza, e oscilava entre os dois, perdido e encontrado naquele amor. Muitas vezes riam, a boca dele era um altar, como o seu sexo, ou uma frase dita secretamente ao ouvido. E dormir nunca fora tão bom – como acordar de manhã e começar logo a sorrir só porque os pássaros que nunca se ouviam cantavam agora no beiral da varanda. Eles tinham tudo e não tinham nada. Ela julga assim que voltou a acreditar em Deus. Foi também por isso que o desamparo tomou conta dela sem avisar.