sexta-feira, 23 de novembro de 2018

- Mãe?












nick cave | let it be

Estas palavras viajam sem âncora, crescendo a despropósito entre o céu da boca e a boca do corpo. Digo:
- Mãe?
- Sim?
- Nada, não é nada.
No ventre terroso do teu corpo onde, por assim ser, começa o teu nome, uma árvore de mil frutos que se intromete entre a língua e as mãos, digo mil frutos e a minha boca não nega o seu sabor de mel - que o vento e a chuva nos lavem da face de terra e ainda assim o meu coração se erga sem medo, e com ele todo o tempo. E nos teus olhos, nessas fronteiras de vidro onde tantas vezes espreitei a eternidade, duas asas nos esperem num abraço que nos há-de elevar pelos céus.
- Mãe?
- Sim?
- Nada, não é nada.
Quem nos parte deixa para trás um rasto de coisas por nomear. Aqui falamos das nossas pequenas tristezas. Quem nos parte habita depois os lugares em que a memória concebe outras histórias e os nomes repousam em nós, e devagarinho, muito devagarinho, enxugamo-nos, num fundo de tanta água.
- Mãe?
- Sim?
- Nada, não é nada.
Comíamos pêssegos maduros sentadas no muro, ensolaradas de tanto abismo lá em baixo, de tanta doçura de frutos e eu:
- Mãe?
- Sim?
- Nada, não é nada.
E do amor sobra-me sempre tudo - excepto o que deveria escrever. Achas que o amor que é tudo e mais essa palavra sem nome, pode voar-me por dentro?
Não, o amor é tudo excepto essas asas nos pés. Tem pés de chumbo e puxa-te para uma escuridão que nem a ti própria reconheces. Não se dá em nomes, não conhece o teu rosto, anda às cegas e de vez em quando desata-se na tua língua, desfaz-se na tua pele como a espuma do mar e tu cais lá dentro e é como um ventre fecundo, sempre a parir dias, sempre a parir noites, e depois nunca mais caminhas, a não ser agarrada a esse chão. Voas, se calhar voas, mas é rente, sempre rente à cova que os teus pés marcam, porque é assim como morrer só que antes do tempo, antes do tempo todo, e tu ficas dependente dessa morte.
Está frio. Frio de orvalho que pinga nos beirais da nossa casa e penso que tenho para aí oito anos e de pernas nuas e saia rodada sinto um lagarto a descer pela roda. As cores vivas de antes todas a preto e branco, agora mortas. Estou do lado de cá do muro, sou uma menina que não corre e está em frente ao muro de parede alta, muito alta.
Deste outro lado do muro imagino até que posso ter oito anos e corro pelo muro em equilíbrio atrás do meu irmão. É apenas um joelho esfolado ou uma ferida de tempo no tempo ou um futuro de filhos a escorrerem entre as pernas.
- Mãe?
- Sim?
- Nada, não é nada.
E caminho com os sapatos de chumbo do amor. Essa palavra sem nome escreve-se torto pelas linhas e a direito do meu corpo.
Do lado de cá é o amor que é quase tudo - excepto o que deveria ser: do lado de cá o tempo todo que havia de haver nesse tempo todo e finalmente, dizes,
- beijar-te,
que é tudo o que deveria ser, o amor.
- Mãe?
- Sim?
- Ainda há tempo, descansa.

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Touch my skin to keep me whole












jeff buckley | mojo pin

Apenas te amo com a carne magoada de tantos sonhos anteriores, apenas te amo e vou anoitecendo devagar. Apenas te amo com a vulgaridade dos dias, com este silêncio velho à beira do mar, nos canteiros, caminhos de erva e de pedra e de terra, à vez seca à vez húmida e os seus breves pirilampos e orvalhos.
Trago o chão todo que pisei agarrado a mim, os homens que amei e a ti, os filhos que pari e de ti mãos jovens como manhãs brancas de veludo e o tempo todo, no tempo todo, agarrado a mim.
- Apenas te amo com a vulgaridade dos dias.
Inventa-me outro lugar, vá.
- Um que seja - perpendicular ao nome das coisas para devolver-me esse espanto redondo que é o amor.
Um lugar, sim, curvo, fechado, lento, lentíssimo. Como um rasto molhado de silêncio lambendo os caminhos, os dias e na terra, à vez seca à vez seca, o chão que trago agarrado comigo.

- Apenas te amo com a vulgaridade dos dias. Demasiado quotidiano, talvez, eu que sou só uma alma antiga.

quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Song












justin vernon | a song for a lover of long ago

The weight of the world
is love.
Under the burden
of solitude,
under the burden
of dissatisfaction

the weight,
the weight we carry
is love.

Who can deny?
In dreams
it touches
the body,
in thought
constructs
a miracle,
in imagination
anguishes
till born
in human −

looks out of the heart
burning with purity −
for the burden of life
is love,

but we carry the weight
wearily,
and so must rest
in the arms of love
at last,
must rest in the arms
of love.

No rest
without love,
no sleep
without dreams
of love −
be mad or chill
obsessed with angels
or machines,
the final wish
is love
− cannot be bitter,
cannot deny,
cannot withhold
if denied:

the weight is too heavy

− must give
for no return
as thought
is given
in solitude
in all the excellence
of its excess.

The warm bodies
shine together
in the darkness,
the hand moves
to the center
of the flesh,
the skin trembles
in happiness
and the soul comes
joyful to the eye −

yes, yes,
that’s what
I wanted,
I always wanted,
I always wanted,
to return
to the body
where I was born.

Allen Ginsberg