Estas palavras viajam sem âncora, crescendo a despropósito entre o céu da boca e a boca do corpo. Digo:
- Mãe?
- Sim?
- Nada, não é nada.
No ventre terroso do teu corpo onde, por assim ser, começa o teu nome, uma árvore de mil frutos que se intromete entre a língua e as mãos, digo mil frutos e a minha boca não nega o seu sabor de mel - que o vento e a chuva nos lavem da face de terra e ainda assim o meu coração se erga sem medo, e com ele todo o tempo. E nos teus olhos, nessas fronteiras de vidro onde tantas vezes espreitei a eternidade, duas asas nos esperem num abraço que nos há-de elevar pelos céus.
- Mãe?
- Sim?
- Nada, não é nada.
Quem nos parte deixa para trás um rasto de coisas por nomear. Aqui falamos das nossas pequenas tristezas. Quem nos parte habita depois os lugares em que a memória concebe outras histórias e os nomes repousam em nós, e devagarinho, muito devagarinho, enxugamo-nos, num fundo de tanta água.
- Mãe?
- Sim?
- Nada, não é nada.
Comíamos pêssegos maduros sentadas no muro, ensolaradas de tanto abismo lá em baixo, de tanta doçura de frutos e eu:
- Mãe?
- Sim?
- Nada, não é nada.
E do amor sobra-me sempre tudo - excepto o que deveria escrever. Achas que o amor que é tudo e mais essa palavra sem nome, pode voar-me por dentro?
Não, o amor é tudo excepto essas asas nos pés. Tem pés de chumbo e puxa-te para uma escuridão que nem a ti própria reconheces. Não se dá em nomes, não conhece o teu rosto, anda às cegas e de vez em quando desata-se na tua língua, desfaz-se na tua pele como a espuma do mar e tu cais lá dentro e é como um ventre fecundo, sempre a parir dias, sempre a parir noites, e depois nunca mais caminhas, a não ser agarrada a esse chão. Voas, se calhar voas, mas é rente, sempre rente à cova que os teus pés marcam, porque é assim como morrer só que antes do tempo, antes do tempo todo, e tu ficas dependente dessa morte.
Está frio. Frio de orvalho que pinga nos beirais da nossa casa e penso que tenho para aí oito anos e de pernas nuas e saia rodada sinto um lagarto a descer pela roda. As cores vivas de antes todas a preto e branco, agora mortas. Estou do lado de cá do muro, sou uma menina que não corre e está em frente ao muro de parede alta, muito alta.
Deste outro lado do muro imagino até que posso ter oito anos e corro pelo muro em equilíbrio atrás do meu irmão. É apenas um joelho esfolado ou uma ferida de tempo no tempo ou um futuro de filhos a escorrerem entre as pernas.
- Mãe?
- Sim?
- Nada, não é nada.
E caminho com os sapatos de chumbo do amor. Essa palavra sem nome escreve-se torto pelas linhas e a direito do meu corpo.
Do lado de cá é o amor que é quase tudo - excepto o que deveria ser: do lado de cá o tempo todo que havia de haver nesse tempo todo e finalmente, dizes,
- beijar-te,
que é tudo o que deveria ser, o amor.
- Mãe?
- Sim?
- Ainda há tempo, descansa.
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