quinta-feira, 29 de outubro de 2020

A história mais bela que conheço













mazzy star | fade into you

Conta-mo outra vez: é tão bonito
que não me canso nunca de escutá-lo.
Repete-me outra vez que o pardo conto foi feliz até à morte.
Que ela não lhe foi infiel, que a ele nem sequer
lhe ocorreu enganá-la. E não te esqueças
de que, apesar do tempo e dos problemas,
continuaram beijando-se cada noite.
Conta-mo mil vezes por favor:
é a história mais bela que conheço.

Amalia Bautista

*

Somos todos tão velhos quando sabemos tudo o que importa saber. Vá, conta-me essa história. Pode ser secreta, dessas que se contam baixinho quando as ruas se esvaziam e as cidades adormecem nos olhos mágicos de uma criança. Conta-me então essa história como se fosse uma criança pequena e sentada no teu colo eu precisasse das tuas palavras para que o mundo - este onde mesmo agora caí - fizesse sentido.
Dizes: a história mais indiscreta é a que os olhos olham e narram. Dura mais de três segundos e pode germinar de uma só palavra. Mas essa tu sussurras, é secreta. Não há nada no mundo mais importante que, assim aninhada entre os teus braços, saber que lá fora entre os pregões da multidão porque hoje é sábado e o grasnar das gaivotas, a vida se dá em episódios tão breves como estações onde os comboios param para recolher mãos, olhos, beijos e o corpo numa promessa de sol. 
És belo como uma paisagem toda recortando-se contra a eternidade. Sim, essa mesmo onde as palavras se escondem em ocasos de silêncio e laranjas impossíveis, assim tão translúcidos como diamantes. E os meus olhos percorrem o teu corpo como se quisessem decorá-lo. É tão breve a eternidade. Tão breve, dizes. 
Olha, subitamente não ouço já o restolhar das árvores, o rumor das aves, dos frutos amadurecendo em qualquer boca ávida lá fora no mundo, onde antes a brisa se abria em folhas largas e nelas se escrevia esta história que para ti guardei.
Não é verdade, é apenas o Verão, a humidade do Verão voando em espirais de um calor que trepa pelos ramos e rebenta numa outra música. Por vezes o silêncio é tão estridente como gestos e aqui sob as tuas mãos a minha pele parece ter ganho essa liquidez: esse rumor do mundo desagua agora em mim - ouves? - palavras secretas como círculos de água vão nascendo no meu ventre e tu lentamente entras em mim. É importante que saibas que é por isso que o mundo lá fora parece ter desvanecido. Mas não, está apenas à espera que tu acabes de contar-me esta história.
Que eu penso: como pedra, como árvore ou água, como a asa impossível de uma ave ferida, eu existindo sob a viagem mais longa da tua língua aprendo: não há nada mais para saber, apenas o teu nome. Esse nome, esse apeadeiro secreto do tempo dentro de mim. Depois até pode voltar a ser Primavera, eu me darei em frutos assim todos contidos numa única flor, corpo-teu, húmida-carne-tua, vida-em-mim.
E agora olho dessa janela indiscreta nesse comboio que um qualquer artista sonhou num qualquer dia (pode ser ontem, hoje, agora mesmo) num qualquer lugar (pode ser esse que acontece sob as tuas mãos quando caio nos teus dias e deixo que me traces uma paisagem com céu ilimitadamente azul) e digo: conta-me essa história. Para que o mundo - este mesmo onde ainda agora caí - faça sentido.
Vejo tão claramente por dentro dos teus segredos que também eu sou velha. Tão velha como os velhos são. E nós dois, duas almas antigas, a envelhecer juntos.

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